Por Marcela Smolenaars
Clube de leitura D’Elas
“[…] o mais legal desta obra é ver a evolução do personagem principal, um indivíduo altamente ganancioso e egocêntrico que passa a se importar com o sentimento das pessoas e que, com a presença constante dos pensamentos de Olívia, começa a praticar a medicina para ajudar seus pacientes, obter uma espécie de perdão interno e crescentemente resgatar o seu verdadeiro ‘eu’.”
⇒ Cuidado, contém spoiler!!!
Escolhi esta obra para indicar no Clube de Leitura D’Elas de tanto que uma pessoa próxima de mim dela falava.
A forma como Verissimo narra seus romances, apesar de ter lido poucos deles, sempre me contagia. “Olhai os lírios do campo” foi uma obra escrita em Porto Alegre no ano de 1938. Trata-se de uma leitura fluida, ao mesmo tempo requintada (a ponto de ter que olhar diversas palavras no dicionário e traduzir expressões em outros idiomas). Existe a quebra no tempo, com idas e vindas cronológicas, característica marcante da escrita de Verissimo.
A transmutação do personagem principal, Eugênio, é, para mim, a grande surpresa do livro. Ele, um homem de origem simples, envergonhado da humildade e da falta de dinheiro de sua família, anojado das humilhantes situações por que ele passara (muito bem representado na figura do pai, Ângelo, sob seu olhar, um fracasso em pessoa, não digno sequer de um cumprimento seu na rua), constrói toda sua vida em cima de uma carreira profissional que lhe traria prestígio (médico), mas não para ajudar as pessoas, e sim para ter status profissional.
Em seu relacionamento, e aqui mora a grande revelação e a dor do personagem, optou por casar-se com Eunice, uma mulher da alta sociedade, fina, rica, bela e, desde o princípio, desprezível, com valores questionáveis, mas que lhe proporcionaria a estabilidade e o renome que sempre almejou.
Profissionalmente e pessoalmente conseguiu tudo que achava que queria… Mas enganara-se: o casamento dura três anos, longos três anos. Em meio ao desconforto do personagem com aquele mundo que não lhe pertence, com diálogos entre pessoas daquela classe social totalmente sem sentido, antes, durante e depois, e principalmente depois, Eugênio relaciona-se crescentemente com Olívia, uma colega médica que não poderia, naquele momento em que se conheceram, oferecer o que ele buscava.
Entre encontros e desencontros da vida, Olívia acaba engravidando, e, pouco tempo depois, vem a falecer, o que então faz enaltecer em Eugênio o sentimento de que era por essa mulher que ele deveria ter optado enquanto havia tempo. A culpa, o remorso, a dor da perda repentina e, principalmente, a completa falta de cobrança por parte de Olívia, extremamente compreensiva com os desejos de Eugênio, respeitando o momento que ele estava vivendo, são os dados mais alarmantes desse romance.
Tudo que ela escreve para ele vem à tona após a sua morte, e ela cresce como personagem no enredo, e mostra-se verdadeiramente presente, na narrativa, após a sua morte. Fruto desta relação pré e extraconjugal, Anamaria é assumida então pelo pai, que decide se separar de Eunice, e ela faz relembrar a Eugênio as grandes virtudes da mãe.
Gradualmente, Eugênio começa a mudar sua perspectiva sobre o que é a vida, principalmente após o episódio da morte em razão de um aborto mal sucedido de Dora, filha do seu antigo amigo Filipe (que pertencia ao mundo de Eunice), amigo este que constrói um Megatério, o maior prédio da América Latina, em Porto Alegre, em parte, às custas da vida da filha.
Então, o mais legal desta obra é ver a evolução do personagem principal, um indivíduo altamente ganancioso e egocêntrico que passa a se importar com o sentimento das pessoas e que, com a presença constante dos pensamentos de Olívia, começa a praticar a medicina para ajudar seus pacientes, obter uma espécie de perdão interno e crescentemente resgatar o seu verdadeiro “eu”.
A leitura em si, no início e no final, é bastante límpida, com algumas “trancadas” em razão do aprofundamento de outros personagens não tão relevantes, mas que fazem contextualizar a realidade em que Eugênio vivia. O livro é muito rico, repleto de passagens lúdicas e disruptivas.
Destaco: “Felicidade é a certeza de que a nossa vida não está se passando inutilmente. São estes intervalos entre um trabalho cansativo e outro trabalho cansativo, estes momentos em que a gente pode conversar com um amigo, brincar com os filhos, ler um bom livro… O erro é pensar que o conforto permanente, o bem-estar que nunca acaba e o gozo de todas as horas são a verdadeira felicidade. Como agora eu vejo claro! É preciso o contraste…” (p. 258/9).
A Dica Cultural desta semana é da gaúcha Marcela Smolenaars, Delegada de Polícia, mestranda em Segurança Cidadã na UFRGS, apreciadora de vinhos e de livros indicados pelo Clube de Leitura D’Elas.
- Título : Olhai os lírios do campo
- Autor : Erico Verissimo
- Editora : Companhia das Letras; 1ª edição (22 fevereiro 2005)
- Idioma : Português
- Capa comum : 288 páginas
- Ano de publicação : 1938
SOBRE O AUTOR
Erico Verissimo nasceu em 17 de dezembro de 1905 em Cruz Alta, no interior do Rio Grande do Sul. Trabalhou como bancário, balconista de armazém e farmacêutico até se mudar, aos 25 anos, para Porto Alegre. Na capital gaúcha, foi redator, diagramador e ilustrador da Revista do Globo. Autor de uma obra extensa e marcante, foi também tradutor de livros como Contraponto, de Aldous Huxley.
Morreu em 1975, antes de concluir o segundo volume de suas memórias, Solo de clarineta, publicado postumamente.
1 comentário
Excelente indicação de leitura, para quem não leu mas também para reler! Érico Veríssimo deixou um legado literário fantástico para a humanidade. Obrigada, Marcela e @imulher