Você deve ter ouvido, e até cantado, muitas vezes a música “O Mestre-sala dos Mares”, de autoria de Aldir Blanc e João Bosco, lançada por Elis Regina. Talvez você não saiba a que a música se refere e nem tenha vislumbrado a poesia e as figuras poéticas nela contidas.
A música retrata fato da História do Brasil, conhecido como “A Revolta da Chibata”, que aconteceu em novembro de 1910.
O FATO HISTÓRICO
O Brasil proclamou a abolição da escravatura em 1888, mas a Marinha brasileira, sempre muito elitista, ainda manteve o costume de aplicar chibatadas nos marinheiros afrodescendentes.
Os Oficiais da Marinha eram brancos que haviam estudado e alcançaram os postos mais elevados. Os escravos, libertos havia pouco tempo, tinham menos estudo e, muitas vezes, eram forçados a entrar para a Marinha como marinheiros. As tripulações eram, em sua maioria, composta de afrodescendentes.
Os marinheiros eram maltratados, trabalhavam muito, recebiam pouco e tinham péssima alimentação. O castigo da chibata (tira de couro ou vara fina e comprida utilizada para golpear e dirigir cavalos ou para castigos corporais) havia sido abolido em outros países e no Brasil; apenas a Marinha ainda o adotava.

No início dos anos 1900, o Brasil adquiriu dois navios de guerra da Inglaterra. Os marinheiros ficaram dois anos na Inglaterra para aprender a operar os navios, que exigiam habilidades especiais. Eles, então, viram que os marinheiros ingleses eram bem tratados e se indignaram.
Ao retornarem para o Brasil, tomaram navios no porto do Rio de Janeiro, apontaram os canhões para o Palácio do Catete, onde trabalhava o presidente Hermes da Fonseca, e exigiram dele o fim do castigo da chibata e a anistia aos amotinados.
A revolta, que foi liderada por João Cândido Felisberto, começou logo após Marcelino Rodrigues Menezes, marinheiro afrodescendente alistado regularmente, sofrer o castigo de 250 chibatadas por ferir deliberadamente um companheiro com uma lâmina de barbear.

Com os canhões apontados para o palácio do governo, a contragosto o presidente atendeu aos pedidos, e o motim acabou.
A MÚSICA E A POESIA
Deste fato histórico, Aldir Blanc compôs “O Mestre-sala dos Mares”, que foi musicado por João Bosco.
Inicialmente, Aldir Blanc fala do “dragão do mar que reapareceu na figura de um bravo feiticeiro, a quem a História não esqueceu”. Pode ser que ele quisesse dizer na figura de um bravo “marinheiro”, mas para evitar problemas com a Marinha, optou por “feiticeiro”. No entanto, ele pode ter-se referido a João Cândido como “feiticeiro” figurativamente, como o líder que cativou e enfeitiçou os liderados, incitando-os a segui-lo na revolta.
João Cândido ficou conhecido como o “Almirante Negro”. Pode ser que o autor tenha preferido “navegante” a “almirante” pelo mesmo motivo. A dignidade de João Cândido, tal qual a de um mestre-sala, levou-o a liderar a revolta, para defender os marinheiros.

“Rubras cascatas jorravam das costas dos santos” refere-se ao sangue que jorrava das costas dos marinheiros que sofriam as chibatadas. O sangue inundou o coração do pessoal do porão, onde estavam os marinheiros, e os levou à revolta.
O pessoal do porão gritava “glória às sereias, às baleias, à cachaça”, ou seja, a tudo aquilo que poderia desviar o navio de seu rumo. Da mesma forma, a revolta pretendia mudar o rumo dos acontecimentos e da própria Marinha de Guerra.
“Glória a todas as lutas inglórias, que não esquecemos jamais”. Aldir Blanc exalta as lutas inglórias travadas ao longo da vida, assim como foi a de João Cândido.
Os versos finais são primorosos. “Salve o navegante negro, que tem por monumento as pedras pisadas do cais”.
João Cândido Felisberto morreu em 1969. A música foi composta em 1974 e não existia nenhum monumento em homenagem a João Cândido. Por isso, ele tinha como monumento apenas “as pedras pisadas do cais”.
A estátua em homenagem a João Cândido foi inaugurada em 22 de novembro de 2007 nos jardins do Museu da República. A estátua estava de frente para o mar e de costas para o palácio do governo.

Em 2008, a estátua foi colocada na Praça XV de Novembro, no centro do Rio de Janeiro.
Além das “pedras pisadas do cais”, João Cândido tem a lembrança da História, a poesia de Aldir Blanco e a música de João Bosco a exaltar seus feitos.
Glória aos heróis. Glória eterna.
Glória aos poetas. Pra sempre.
Confira a letra AQUI
Artigo publicado em atendimento à sugestão feita pela leitora Margareth Tângari, que gentilmente enviou vídeo da música ao Portal iMulher.
3 Comentários
É impossível não se emocionar com essa história tão digna e heróica. Me lembro da música e quando a ouvia não ligava à História, por não ter a devida maturidade quando estudei em sala de aula “A Revolta da Chibata”. Um dia vi essa estátua e fiquei demorados minutos lendo a placa,contemplando a fisionomia desse homem gigante, o Almirante Negro. Fotografei.
A Marinha passou a ter mais dignidade e honra, depois de ter que passar por essa vergonha; castigar homens com chibatas como coisa normal.
Belíssimo artigo!
Parabéns à imulher.
Parabéns pelo belíssimo resgate histórico!
Emocionante…como conhecemos pouco nossa bela história!
Parabéns pelo resgate.!