Por Cláudio Duarte
Ouvi, de uma assistente social que trabalha em atendimento a pessoas em situação de rua, que a maior dor dos pedintes e mendigos é que eles se sentem invisíveis perante as demais pessoas.
As pessoas evitam olhar para eles; passam por eles com indiferença, como se estivessem passando por um poste. Mesmo as pessoas que lhes dão ajuda, muitas vezes sequer olham para eles. Entregam-lhes a nota ou as moedas como se as atirassem ao chão, sem lhes direcionar um olhar sequer de atenção e solidariedade.
Não dizem “bom dia”. Não lhes dirigem o olhar ou sorriso de solidariedade. Doam o dinheiro como se se desfizessem de uma obrigação desagradável, da qual querem se ver livres. Livraram-se de um fardo! Praticaram boa ação ao doar moedinhas!
A dor maior dos mendigos e pedintes não é a penúria, nem a dificuldade, nem a eventual fome. Dói-lhes mais a indiferença com que são tratados e com a qual se sentem invisíveis. Como se não existissem. Como se não fossem seres humanos.
Domingo passado, almoçando num restaurante, observei uma cena que me sensibilizou.
O restaurante tinha mesas do lado de dentro e na calçada, do lado de fora. Eu estava em uma mesa do lado de dentro. Contudo, pela varanda eu conseguia observar o que se passava em parte da rua e na calçada.
Observei um mendigo, carregando um saco de latinhas às costas, aproximar-se de uma mesa que estava na calçada e na qual dois rapazes almoçavam e conversavam amigavelmente. Observei a aproximação do mendigo e, dentro de meu egoísmo, pensei comigo mesmo que tinha sido melhor sentar-me do lado de dentro do restaurante, aonde o mendigo não teria acesso, para que eu não fosse incomodado durante a refeição. Detesto que me interrompam quando estou à mesa.
O mendigo deve ter-lhes pedido ajuda. Notei, contudo, que a conversa entre eles se estendia além de simples pedido de ajuda em forma de dinheiro ou de latinhas de cerveja. A posição de minha mesa permitia-me observar a cena, embora não me permitisse ouvir o que falavam.
Os rapazes deveriam estar a conversar com o mendigo. Durante a conversa deles, notei o mendigo mais à vontade e desenvolto, diferentemente da maneira como abordou os dois amigos.
Notei até sorriso no semblante do mendigo, como se estivesse em conversa agradável com velhos conhecidos. A situação despertou-me curiosidade. Continuei observando.
De repente, o mendigo deixou no chão o saco com latinhas que trazia às costas, puxou a cadeira e sentou-se à mesa com os dois amigos que lá estavam. Perguntei-me mentalmente se ele teria sido convidado ou se foi impertinência do mendigo. Logo obtive a resposta.
Um dos rapazes se levantou, foi até as panelas do restaurante (era self-service) e voltou com generoso prato, com uma montanha de comida que colocou na frente do mendigo. Chamaram o garçom e pediram um refrigerante, que também ofereceram a ele.
O mendigo começou a almoçar com uma boca boa, manuseando corretamente o garfo e a faca e, ao mesmo tempo, conversava e se divertia com os dois.
A cena comoveu-me. A consciência acusou-me pela indiferença com que vi o mendigo quando de sua chegada ao restaurante e até do preconceito com que o julgara. Senti-me pequeno e mesquinho diante da bondade dos dois rapazes e da atenção com que tratavam o mendigo.
Levantei-me, fui até eles e disse-lhes o quanto admirei o gesto deles. Os dois sorriram constrangidos. Haviam tido atenção com o mendigo pelo bem que sentiam em praticar a boa ação e não esperavam recompensas e nem manifestações de admiração.
Apresentei-me a eles, e eles se apresentaram como João e Gabriel. Foram além: fizeram questão de apresentar-me o novo amigo que estava à mesa, Ênio. Tiveram a gentileza de apresentar-me o Ênio, que me estendeu a mão com alegria e grande sorriso nos lábios.
Pedi a eles para bater uma foto. Eles concordaram, mas antes perguntaram ao Ênio se também ele concordaria. Ênio concordou alegremente. Gesto de grande respeito!
Bati as fotos que ilustram esta crônica.
Naquele domingo, Ênio deixou de ser invisível; recebeu a atenção de dois desconhecidos. Almoçou em companhia de duas pessoas. Sentou-se à mesa de bom restaurante. Foi servido. Foi tratado com humanidade, respeito e atenção. Não matou somente a fome de comida; matou a carência de atenção e afeto. Tornou-se visível graças à atenção de dois jovens rapazes.
No mundo de indiferença e desatenção, gestos de solidariedade e amor ao próximo merecem ser registrados como exemplos que se devem multiplicar.
João e Gabriel tocaram meu coração, e eu resolvi escrever esta crônica esperando tocar o coração dos leitores com o grande exemplo de bondade e caridade.
Você já tornou alguém visível? Você pode tornar alguém visível por meio de atenção, solidariedade e respeito?
8 Comentários
Fantástica crônica! Relato que toca nossa consciência! Faz-nos pensar o quanto precisamos amolecer nosso preconcetos!!
Meu amigo, sua crônica me remeteu ao final dos anos de 1960, 68 ou 69 nao me lembro bem.
Eu viajava de ônibus para Marataízes e na parada para almoço em Ponte Nova ao sentar à mesa, bem na porta lateral do restaurante onde o ônibus parou, eu, ao ser indagado pelo garçom sobre o que comeria, fui abordado por um senhor do tipo do Ênio que me pediu para pagar -lhe um almoço. Imediatamente o garçom, num gesto um pouco mal educado, disse-lhe que fosse embora porque estaria me incomodando no que eu falei que não, ele não está me incomodando e, contra a vontade do garçom, o convidei a sentar-se à mesa e almocaçe comigo. Pedi os pratos e almoçamos, conversamos sob o olhar insatisfeito do garçom. O motorista ao se dirigir ao ônibus para reiniciarmis a viagem parou na minha mesa e me alertou que iríamos continuar a viagem, paguei a conta e coberto por uma imensa alegria e satisfação me dirigi ao ônibus, eu, no auge dos meus dezoito anos, recebi um olhar e um sorriso de agradecimento que nunca mais esqueci. Hoje, como de costume, ao ler sua crônica, aos 71 anos, não consegui deixar de.me emocionar e confesso, deixar cair algumas lágrimas de gratidão aos meus pais que passaram, não só a mim, mas aos meus outros 12 irmãos, esse respeito e esse acolhimento com quem quer que seja.
Mais uma vez, parabenizo você por nos brindar com seus textos e por me permitir voltar no tempo e reviver algo que até hoje trago no coração.
Forte abraço!
Linda crônica! Que ela seja sempre lembrada todos os dias quando em nossa preça ou indiferença nos esqueçamos que eles estão cumprindo com a pior tarefa. Ensinar nos a verdade nua e crua, o quanto somos preconceituosos e o quanto nos afastamos do amor de Deus que não nos difere uns dos outros.
Que crônica!
Que lição de vida!
Cláudio Duarte, você me emocionou!
João e Gabriel,aplaudo vocês de pé!
Ênio,muitas bênçãos para você!
Coronel, peço perdão, fui ler o que escrevi e notei uma imperdoável traição do corretor do teclado que fez ir por água abaixo meu convite para que o meu Ênio, ALMOÇASSE comigo.
rsrsrsrsrsrsr
Minha experiência contrária.
Eu, entrava em um restaurante quando fui abordado por um senhor pedindo dinheiro para comprar comida. Disse-lhe que aguardasse ali fora, entrei, preparei uma boa marmita e quando saí o cara não estava mais lá. Voltei para dentro, assentei-me, abri a marmita e comia tranquilo quando percebi que todos me olhavam de soslaio e não era para menos. Um cara metido em um terno bem talhado com camisa, gravata, calçado, tudo combinando perfeitamente e comendo em marmita de alumínio descartável, só podia chamar a atenção.
Meus cumprimento ao João e Gabriel pela atitude e ao Ênio pelo reconhecimento.
Ao Claudio meus parabéns pela mensagem de sua crônica.
Estou relendo essa crônica mais uma vez, e resolvi ler os comentários. Que delícia ver que muita gente quando lê algo que é um exemplo de vida, se lembra de casos pitorescos e inesquecíveis que aconteceram com eles. Muito bom fazer parte dessa turma do bem!!!
Eu tenho o maior respeito por vocês!!!
Maravilhoso…desperta pra reflexão.
A gente anda no ” automático “, você fez bater o sino da consciência .
Feliz no assunto, na foto e na maneira sensível pra escrever.
Parabéns 👏