De dentro da rotina, pode surgir bela surpresa. Como a narrada na crônica.
Não é novidade que a vida nos reserva surpresas. Nos momentos que parecem mais rotineiros, eia que a vida, de dentro da rotina, extrai um fato emotivo que toca a alma.
Que pode haver de mais rotineiro que comprar pão numa padaria para o café da manhã? O freguês vai até os pães, escolhe os mais crocantes (ou os menos torrados, de acordo com seu paladar), coloca-os na embalagem, a moça pesa os pães, põe a etiqueta de preço na embalagem e lá vai você para a fila do caixa.
O que de mais diferente pode acontecer é encontrar um amigo e, depois do bom dia, trocar meia dúzia de palavras corriqueiras, sobre o dia a dia, a política, o futebol, a corrupção, o preço das coisas aumentando…
Outro dia, minha rotina foi quebrada na fila do caixa depois de comprar o pão.
Havia três pessoas a minha frente na fila. Eu esperava pacientemente, quando notei que o senhor do caixa olhou para a fila, como que avaliando se precisaria da ajuda de alguém para abrir o caixa ao lado e apressar o atendimento.
Era um senhor de barba e cabelos brancos, simpático, sem óculos (pouco comum para alguém de idade próxima da minha, isto é, beirando os 70).
Ele abaixou a cabeça em seguida, deu o troco ao cliente e, enquanto esperava o próximo cliente, levantou a cabeça e olhou as pessoas da fila novamente.
Desta vez, contudo, ele não olhou para todas as pessoas; pareceu-me que ele olhou em minha direção.
Enquanto o próximo cliente fazia o pagamento das compras pelo cartão de crédito, uma vez mais ele olhou para mim. Naturalmente, pensei que poderia haver algo errado comigo; eu estava fazendo a caminhada matinal e havia parado na padaria. Estaria eu pálido por conta do esforço? Ou excessivamente corado? Eu não estava ofegante e muito menos demonstrava sinal de mal estar.
Continuei a caminhada rumo ao caixa. Aproximei-me dele, e o senhor gentilmente me disse:
– O senhor me fez lembrar-me de meu tio e, por essa razão, olhei-o reiteradamente. A semelhança com ele me chamou a atenção.
– Espero que lhe tenha trazido boas recordações, respondi-lhe.
– Somente boas recordações, retrucou ele. Meu tio foi meu segundo pai. Quando vim para Belo Horizonte, ele me recebeu, eu fiquei na casa dele, ele me educou, me apoiou e me ajudou a ser quem eu sou.
Percebi que ele se emocionava ao falar do tio, e a emoção dele contagiou-me.
– Quando meu tio estava no leito de morte, eu perguntei a ele o que eu poderia fazer ou dizer-lhe para manifestar-lhe o imenso amor e a imensurável gratidão que sentia por ele. Meu tio me respondeu que eu nada tinha a agradecer-lhe, porque ele fizera tudo por amor e que eu me tornara o filho dele. Assim como eu o tinha por meu segundo pai, ele me tinha como filho.
Nesta altura da conversa, os olhos de nós dois marejavam. Ele, pela lembrança, a saudade do tio e a gratidão que lhe devotava. Eu, sensível e emotivo, contagiado pela emoção dele e por haver sido o meio que lhe fez aflorar as lembranças de seu tio querido.
Aumentando-me a emoção, lembrei-me da Oração de São Francisco “que eu leve amor, que eu leve fé, que eu leve alegria”.
Inesperadamente, num dia qualquer, numa fila de padaria, eu fui, ainda que involuntariamente, instrumento de boas lembranças, de amor e de bons sentimentos.
Compensa ser instrumento de amor, de paz e de bondade porque, além de receber a energia dos bons sentimentos que você desperta, você também sente aflorar em você os mesmos bons sentimentos.
Cláudio Duarte.
Colunista e colaborador do PORTALIMULHER.
3 Comentários
Cláudio,
Que delícia de narrativa!!
Você, com certeza, sabe que estou emocionada. A vida nos presenteia de diversas formas. Você foi agraciado com o prazer do amor e carinho de uma lembrança alheia, e eu com a leitura desta crônica vivida por um amigo especial!!!
Cláudio Eustáquio, meu velho amigo, as lembranças de oportunidades em que trazemos alegria a outrem, mesmo que involuntariamente, são aquelas que nos trazem uma grande paz interior. Um abraço
Cláudio, parabéns pela bela narrativa e principalmente pela sua abertura para receber mensagens como esta.
Eu creio que coisas surpreendentes acontecem a todo momento, mesmo nos de rotina. Não os percebemos na maioria da vezes por falta de abertura para o outro. A sintonia com o ambiente precisa estar sempre bem afinada pra dar e receber.