Titan, o Zeitgeist e a reação das redes
A implosão do mini submarino Titan, a 3.800 metros de profundidade nas proximidades dos destroços do Titanic, matando instantaneamente seus cinco tripulantes, teve grande repercussão na imprensa internacional e nas redes sociais. O fato de seus tripulantes serem milionários “turistas de profundidade” chamou a atenção mundial e gerou reações fortes. Por um lado, trata-se de acidente pequeno se comparado ao próprio naufrágio do Titanic em 1912, quando mais de 1.500 pessoas perderam a vida. Por outro lado, trata-se de catástrofe midiática, de grande interesse popular considerando a excentricidade da aventura submarina protagonizada por cinco milionários. Curioso é que, nas redes sociais, pipocaram inúmeras mensagens de desprezo às vítimas desta grande tragédia para seus amigos e familiares. Comentários do tipo “tiveram o que mereciam”, “irresponsáveis”, “bem feito”, “fuck the rich”, etc. abundaram. A pergunta é: como tanta gente perdeu empatia pelo próximo, uma característica que nos torna humanos?
Talvez faça parte do Zeitgeist, o espírito de nossa época, esta grande manifestação de mensagens de ódio de classe que encontra paralelo no discurso político nas mídias sociais. Talvez seja só schadenfreunde, o prazer que muitos têm com o sofrimento alheio. Talvez a motivação deste desprezo seja inveja, que outrora era considerada um dos pecados capitais, mas que hoje é considerada como sinalização de virtude e de engajamento em causas ditas sociais. Talvez estas manifestações dependam algo de reação instintiva e de má compreensão do mundo à nossa volta.
Sistema 1 e sistema 2: Por que reagimos assim?
O psicólogo Daniel Kahneman (Nobel em Economia de 2002) tem um livro fascinante, “Rápido e devagar: Duas formas de pensar” onde ele teoriza como nossas mentes funcionam. Temos dois sistemas de organização do pensamento, um mais intuitivo, emocional e rápido; o outro, mais lógico, deliberativo e mais lento para tomada de decisões. Os dois sistemas interagem, de forma que o sistema intuitivo, que usa nossa memória genética, é alimentado também pela nossa capacidade cognitiva, pelo nosso treino em resolver logicamente problemas e pela nossa experiência de vida. Aparentemente, não são só seres humanos que têm estes dois sistemas de pensamento, existem inúmeras evidências de que outros animais os têm. O sistema intuitivo provavelmente seja inicializado por transmissão genética de conhecimento, como o reconhecimento rápido de presas ou predadores. Ursos e grandes felinos reconhecem nos seres humanos a probabilidade de que sejam seus predadores e, portanto, potencialmente perigosos, ajudando a decidir a evitar contato. O sistema lógico e deliberativo entra em ação quando um urso, por exemplo, ataca um ser humano e percebe que é muito fácil vencê-lo. Esta experiência faz com que o urso perca o medo e comece a predar seres humanos, o que põe em perigo sua própria existência, pois em parques e reservas onde um ataque do tipo ocorre se torna necessário abater o urso para evitar problemas posteriores.
Talvez nosso medo, desprezo ou inveja dos mais ricos estejam associados a algum tipo de memória genética e por causa disto faça parte do nosso sistema intuitivo. Afinal, por milhares de anos, seres humanos sempre foram pobres e morriam precocemente, ou de fome e doenças ou de forma violenta. Em caso de ataque surpresa de tribos rivais, o sistema intuitivo é rapidamente acionado e permite tomada de decisão sem pensar onde confiança nos outros membros do grupo é essencial. Possivelmente, por causa desta aprendizagem genética tendemos a ser tribalistas e vemos pessoas diferentes, de fora do grupo, como potenciais inimigas. É o nosso sistema intuitivo buscando garantir nossa sobrevivência! No caso de pobreza, a contribuição de cada membro do grupo é necessária para a sobrevivência de todos. Mas e se alguém estiver comendo mais do que os outros, ou acumulando alguma riqueza? Num grupo pobre, isto pode por a sobrevivência dos outros em risco é algo claramente condenável. Desta forma, sistema intuitivo e emocional informa que enriquecimento e pessoas diferentes das da nossa tribo são potencialmente perigosos.
Ocorre que em sociedades primitivas, pobres e pequenas, a vida seguia aproximadamente o que economistas chamam de jogos de soma zero: o que um obtém a mais, outros obtêm a menos. Por milhares de anos, as sociedades seguiram este padrão, onde abundância e prosperidade não estavam presentes e a vida era, de fato, curta e perigosa. Nosso sistema intuitivo de pensar funcionava bem e garantiu nossa sobrevivência.
Mais lógica e menos emoção: Os segredos da prosperidade e da cooperação?
Por volta de 1820, com o advento do iluminismo e da revolução industrial, quando as sociedades começaram a usar melhor mercados organizados e a promover inovação tecnológica, surgiu a possibilidade de enriquecimento pessoal sem piorar a vida dos demais. É o que economistas chamam de jogos de soma positiva: o enriquecimento de alguns, com base em seu empreendedorismo e inovações, possibilita a melhoria de vida dos demais. As pessoas que obtêm maior sucesso material são agora aquelas que usam mais o sistema lógico e deliberativo, mais lento, mas necessário para desenvolvimento de habilidades importantes como ler, escrever e interpretar textos, acumular conhecimento para melhor desempenho profissional, seja nas artes, nos esportes, na tecnologia e na ciência. Uma vida longa e próspera depende agora mais do nosso sistema lógico do que do intuitivo. E, claro, nosso sistema lógico vai informando melhor o intuitivo, de forma que nossa experiência na resolução dos novos problemas que vão surgindo nos permite resolvê-los de forma melhor e mais rápida.
O nosso medo, desprezo, inveja e ódio a grupos diferentes da gente, como os ricos, ainda são justificáveis? Provavelmente não. Um argumento do nosso Zeitgeist é o de que “tudo bem, prosperamos, escapamos da fome e da miséria, mas a desigualdade de renda é intolerável”. Portanto, fuck the rich! Mas aí vem uma pequena sutileza: desigualdade é como colesterol, existe a desigualdade boa e a desigualdade ruim. A desigualdade boa é aquela oriunda do mérito, do fato de que empreendedores, inovadores, escritores, cientistas, atletas, artistas, comerciantes e todos os tipos de pessoas que enriquecem melhorando a vida dos outros via participação ativa em mercados livres. A desigualdade ruim é aquela que se origina de privilégios políticos, de protecionismo econômico, de uma estrutura institucional da sociedade que visa extrair recursos de grandes segmentos da sociedade e canalizá-los para os grupos que se apossaram do estado e o usam em benefício próprio. Esta desigualdade impede prosperidade e inclusão social, mantém a sociedade empobrecida e põe em risco a coesão social ao gerar desconfiança e aumentar tensão entre grupos distintos.
Desta forma, precisamos usar mais o sistema lógico e deliberativo da nossa forma de pensar para entender apropriadamente as transformações de nossa sociedade e informar melhor o sistema intuitivo de pensar, para evitar que nossas decisões ajudem a reforçar sentimentos negativos que impeçam a plena cooperação de forças produtivas na sociedade. Em suma, tribalismo e ojeriza a pessoas diferentes, como os ricos, pode ser somente um tiro no pé.
7 Comentários
Parabéns…retrato fiel da nossa realidade.
Há tempos classifico os homens em: os que querem e os que não querem. Os que querem tendem a serem bem sucedidos; os que não querem serão empregado dos que querem… Vontade, dedicação, iniciativa, qualidades que hoje são somadas resultando o empreender não está distribuido para todos…. Dai a divisão.
Muito esclarecedor. Gostei bastante. Parabéns!
Corrigindo: não estão distribuidos…
Parabéns pela análise!
Brilhante nesmo. As pessoas que enriqueceram por seu talento e criatividade, merecem nossos aplausos. São as geradoras de empregos e fonentos para a Cultura que verdadeiramente enobrece a espécie humana. São esses vencedores que catapultam os que não nasceram em berço de ouro, alcançar o mesmo pódium.
A inveja é uma desvirtude, alem de um dos pecados capitais mais covardes.
Excelente coluna, Professor Ronald. A empatia mínima esperada dos seres humanos de hoje, na sociedade da informação, deveria ser de valorização da vida. Os sentimentos de inveja sempre existiram e talvez se potencialize nas redes sociais para aqueles que as nutrem; mas daí a se regozijarem com a morte, mostra o lado sombrio pré-iluminista em que ainda vivemos.
Tom Jobim disse que “no Brasil, sucesso é ofensa pessoal”.