Esta crônica abordará três assuntos, aparentemente desconexos e independentes, que se unirão num fato engraçado ao final que, para ser compreendido, precisa das explicações preliminares.
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INTERJEIÇÕES
O primeiro assunto é que todos nós temos a interjeição ou as locuções interjetivas de preferência, usadas em momentos de espanto, admiração ou gratidão. “Meu Deus”, “Nossa Senhora” (que os mineiros, com a mania de falar cortando sílabas, dizem “Nossinhó”), “Caramba”, além de sonoros palavrões guardados para momentos e locais apropriados.
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A POESIA
O segundo assunto é que, quando eu era criança pequena lá em Diamantina (parafraseando o saudoso Joselino Barbacena, da Escolinha do Professor Raimundo), houve a comemoração de Natal no grupo escolar em que eu estudava, com a presença do arcebispo da cidade. (Minha memória me lembra que o então arcebispo de Diamantina, Dom José Newton de Almeida Batista, foi convidado por Juscelino Kubitschek para assumir o recém-inaugurado arcebispado de Brasília em 1961. Portanto, o fato citado nesta crônica ocorreu por volta de 1957 ou 1958.)
Entre representações e cânticos de Natal, fui escalado pela professora para recitar uma poesia saudando Cristo no presépio. Não me lembro da poesia integralmente. Apenas uma estrofe me ficou na memória e dizia assim:
Meu Jesus está descalço
Sente frio no pezinho.
Eu vos dou meu coração,
Fazei dele um sapatinho.
Vá saber por que guardei apenas esta estrofe… Coisas da memória!
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LOCUÇÃO INTERJETIVA
O terceiro fato é que eu adotei a expressão “Meu Jesus está descalço sente frio no pezinho” como locução interjetiva. Em momentos de espanto e admiração, recito a estrofe ou, pelo menos, os dois primeiros versos.
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O CAUSO
Aí vem o “causo” em questão, objeto desta crônica.
Morei em Montes Claros, norte de Minas, progressista cidade industrial e universitária, de muita moça bonita e que recebe moças de outras cidades que lá vão estudar.
Eu usava o transporte solidário para ir para o trabalho; um amigo e eu nos revezávamos com o carro. Quando a cidade estava acordando, íamos conversando descontraidamente no início da manhã, apreciando o movimento das pessoas em direção ao local de trabalho, às faculdades e às escolas.
Em nosso trajeto, apreciávamos o vaivém da juventude, lindas moças a carregar bolsas e mochilas. Quando meu amigo dirigia, naturalmente eu tinha mais tempo e oportunidade para apreciar a beleza e o charme das moças. Beleza, elegância e charme femininos naturalmente atraem o olhar e a admiração.
Ao ver algumas moças passando no “doce balanço a caminho da aula” (Vinícius me permita apropriar-me de seu verso e adaptá-lo), eu pronunciava, quase num murmúrio, a locução interjetiva preferida: “Meu Jesus está descalço e sente frio no pezinho”. Só que eu nunca havia contado ao meu amigo a origem nem a razão daquela expressão, qual fosse a estrofe da poesia que eu recitara em minha infância.
Um belo dia, eu estava dirigindo, com a atenção voltada para a direção do carro. Estávamos parados em um semáforo e passa ao lado do carro uma bela moça, com calça jeans e camiseta sem manga vermelha. De tão bela, ela não andava; flutuava. Ainda me lembro da imagem dela…
Com a atenção voltada para a rua e o tráfego, não a reparei e nem usei a tradicional locução.
Meu amigo virou-se para mim e disse:
– Olha ali, Cláudio. Esta moça de vermelho sente muito frio no pezinho.
Eu então expliquei para ele o motivo da expressão que eu usava, que nada tinha que ver com as moças, nem com sua beleza. Sua origem estava na poesia que eu, criança do curso primário, havia recitado em comemoração ao Natal.
Rimos muito e, a partir daquele dia, “sentir frio no pezinho” passou a ser nosso código para nos referirmos a belas e elegantes moças.
Até hoje, quando nos falamos, ele me pergunta se tenho apreciado a beleza de moças que “sentem frio no pezinho”.
Sempre apreciarei.
Cláudio Duarte.
Colunista e colaborador do Portal IMulher.
3 Comentários
Tempo bom! Montes Claros, continua a mesma de beleza singular. Abraços
Que delícia, que prazer ler essa crônica!
Como sempre,muito bem escrita!
A isso eu chamo de “escrita viva”. Pude ver e sentir ao percorrer as linhas desta despretensiosa crónica: um menino de calcas curtas e encabulado ante a grande autoridade eclesiástica declamar um poema; os dois amigos desfrutando a beleza do desfile matinal das moças em direção `escola e até o espanto do amigo ao saber da origem da expressão. Parabéns Cláudio, pela simplicidade, objetividade e beleza da crônica.
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