Éramos sete pessoas na recepção do centro clínico no dia da consulta. Tenho por hábito levar o Kindle na bolsa, sem dúvida é o melhor entretenimento quando preciso aguardar. A leitura da vez era o clássico da filosofia, A República, de Platão.
Ao meu redor, todos estavam fixos na tela do celular, zapeando pela internet ou apenas abraçando a própria solidão. Nem o ócio da espera anunciada motivou alguém a carregar um livro para passar o tempo.
Note o que acontece quando uma sociedade para de ler:
De 2020 a 2024, o Brasil perdeu sete milhões de leitores. Segundo a principal pesquisa nacional sobre o comportamento leitor no país, a queda aparece em todas as classes sociais, faixas etárias e níveis de escolaridade. Pela primeira vez, há mais não leitores (53%) do que leitores. E, se contarmos apenas os livros lidos por completo, restam 27% dos brasileiros.
Estamos criando uma sociedade que simplesmente não lê.
Ler vai além do entretenimento — é a base que sustenta a cultura e o pensamento crítico. A leitura lapida a paciência, aguça a imaginação e treina a mente para lidar com questões mais complexas.
Sem ela, as sociedades se tornam superficiais.
Colapsa a memória, o pensamento e a cultura em geral — colapsa a civilização.
Quando os livros desaparecem, a luz se apaga
Com a queda de Roma, em 476 d.C., escolas foram fechadas, bibliotecas destruídas e o saber acabou disperso; a alfabetização tornou-se rara e o aprendizado ficou restrito aos mosteiros. Monges copiaram manuscritos antigos, garantindo que parte do saber clássico sobrevivesse.
O isolamento político e social da Europa dificultou a troca de ideias e a preservação da cultura, inaugurando o que se convencionou chamar de Idade das Trevas.
No século IX, Carlos Magno promoveu o Renascimento Carolíngio, incentivando a educação e a preservação dos textos clássicos.
Séculos depois, em 1345, o humanista Francesco Petrarca redescobriu as cartas de Cícero e escreveu, emocionado: “Parecia-me ouvir a sua própria voz.”
Marcava-se ali o início do Renascimento italiano.
A civilização renasceu no momento em que os livros voltaram a ser lidos.
O mesmo padrão se repetiu com a imprensa. À medida que os livros se espalharam, revoluções se seguiram: a Reforma, a Revolução Científica, o Iluminismo.
Onde os livros foram cultivados, o pensamento floresceu.
Onde foram proibidos, o pensamento definhou.
Regimes autoritários logo entenderam que controlar a informação é controlar as pessoas. Livros são perigosos porque preservam a memória e a dissidência — por isso, serão sempre o primeiro alvo.
Basta ver o que ocorreu em tantos períodos da história, da Idade Média à era contemporânea.
Registro histórico
Em 10 de maio de 1933, estudantes nazistas marcharam com tochas pelas cidades alemãs e queimaram milhares de livros — obras de Einstein, Freud, Hemingway e tantos outros. A queima foi um ato simbólico para erradicar ideias que contrariavam a ideologia nazista. Era o prenúncio do Holocausto.
Eles não queimavam apenas papel. Estavam queimando memória.
Heinrich Heine, cujas obras estavam entre as chamas, havia alertado um século antes: “Onde se queimam livros, acabam por se queimar pessoas.”
Sua profecia se cumpriu.
A nova caverna
A triste ironia é que hoje não precisamos mais de tiranos para queimar livros, nós os abandonamos por opção.
Trocamos a leitura profunda por fragmentos intermináveis de conteúdo. Rolamos a tela do celular de forma mecânica e, por fim, escolhemos o raso no lugar do profundo.
O resultado é previsível: os períodos de atenção colapsam, a verdade se distorce, a história é esquecida e o debate se reduz à indignação de quem desconhece os fatos — exatamente como ocorre em sociedades onde os livros são banidos.
Uma civilização que não lê é fácil de manipular.
Torna-se superficial na cultura, fraca na imaginação e cega para a própria história. Sobrevive de espetáculo, não de substância.
Por essa razão, a leitura é mais do que enriquecimento pessoal, é um ato de resistência. Ler livros fortalece as faculdades que todo o resto conspira para enfraquecer.
Toda era que abraçou a leitura ascendeu.
Toda era que a abandonou decaiu.
Os livros não contam apenas histórias. Eles carregam a civilização.
A verdade perturbadora é que nosso futuro será escrito não apenas pelo que criamos, mas pelo que ainda somos capazes de ler.
Se já não lemos, apenas deslizamos o dedo pela tela, então essa é a sombra que nos aprisiona.
Em quase todos os sentidos, as telas se tornaram imagens distorcidas e sedutoras à espreita na Caverna de Platão.
Não são a realidade, mas refletem a realidade; são sombras, ou a sombra de uma sombra. Há muitas luzes brilhantes, todas se movendo na escuridão, e elas se tornam, para a maioria das pessoas, a realidade.
Passados mais de dois mil anos, Platão continua certo.
Nunca o Mito da Caverna fez tanto sentido.
Na alegoria, o filósofo descreve pessoas acorrentadas em uma caverna, capazes apenas de ver sombras projetadas na parede. Elas acreditam que essas sombras são a única realidade, pois nunca conheceram outra. Um prisioneiro é libertado e descobre o mundo real; ao retornar para contar aos outros, é rejeitado, pois preferem continuar presos à ilusão.
Por fim…
Não adianta querer convencer ninguém a ler de verdade. Cada um sabe o melhor para si.
Não tente remover as algemas dos outros.
Não se torne o herói sacrificial de Platão.
Apenas dê o exemplo: leia livros.
Saia da tela.
Foque nos seus relacionamentos, no seu microuniverso.
Nesses lugares você pode, amorosamente, transformar o mundo em um lugar mais promissor e, quem sabe, ajudar aqueles com quem convive a saírem, também, da caverna.

2 Comentários
Excelente a tua coluna, Simone, muito pertinente ao momento em que estamos vivendo, de menos leitores e de mais intolerância. O livro é o meio da alma ser livre, pois pode viver várias vidas, como se habitasse vários corpos. Não ler, certamente, é viver nas trevas da ignorância, no porão espiritual. Obrigada, Simone, por ser um exemplo de mulher e cidadã, além de uma ávida leitora, sempre a nos instigar!
Texto impecável, entra como um raio pra se refletir nesses tempos de miséria intelectual.
Povo que não lê é facilmente manipulável.
Parabéns!