Por Claudio Shikida
Entre, aproximadamente 1568 e 1648, Espanha e Províncias Unidas foram protagonistas de um longo conflito, a Guerra dos Oitenta Anos, que culminaria na independência dos neerlandeses. Ali nasceria a república holandesa. Algum tempo depois, em 1776, foi a vez das 13 colônias da América do Norte se revoltarem, passando por processo semelhante (embora mais breve) que resultou na criação dos Estados Unidos da América (EUA).
Mudanças nas ‘regras do jogo’ de um país – aquilo que, em Economia, chamamos de ‘instituições’ – ocorrem ao longo da história de forma violenta ou pacífica. Os exemplos acima ilustram o primeiro caso, mas há mudanças que, muitas vezes, passam despercebidas e são implementadas de forma pacífica. A história da prosperidade humana não é nem linear, nem previsível. Sequer pode-se dizer que seja um processo linear em direção ao progresso: sociedades retroagem ou adormecem na estagnação. Coréia do Norte e Venezuela estão aí para quem quiser ver.
Chama a atenção, portanto, quando Paul Romer (Nobel de Economia de 2018) propôs, em 2009, em uma palestra do famoso TED Talk, o conceito de charter cities. Trata-se de um modelo de cidade que opera sob uma carta, alvará ou contrato (a tal charter). O ponto distintivo deste tipo de cidade, em sua proposta, é que o contrato prevê que esta cidade opere sob um sistema legal distinto daquele vigente no país. Mais ainda, na ideia original de Romer, a cidade seria construída praticamente do zero, ou seja, escolher-se-ia um terreno vazio para se erigir a exótica cidade.
Claro que a ideia é de difícil implementação, mas sua inspiração é bem óbvia: olhamos para as duas Coreias e vemos que a diferença entre elas decorre, basicamente, das diferentes instituições adotadas pelos respectivos governos após o conflito de 1950-53. O insight de Romer é: por que não experimentar uma mudança institucional radical em escala menor, sem derramamento de sangue? Sim, os leitores têm razão de achar tudo isto muito além do alcance de nossa sociedade.
Entretanto, existem exemplos que, de um modo ou de outro, destoam das ideias originais de Romer. Hong Kong (pelo menos até 2020, quando a China continental forçou sua ‘reentrada’ no sistema político socialista) é sempre citada como um exemplo de charter city, embora não tenha sido concebida como tal.
Outro exemplo é Próspera, em Honduras que, por sinal, tem enfrentado problemas com o governo esquerdista eleito que tem feito de tudo para rasgar os acordos feitos previamente entre a administração da cidade e o governo hondurenho. A propósito, modelos moderados de charter cities têm sido propostos e construídos nos últimos anos como se pode ver na página do Charter Cities Institute. Um deles, que interessa aos gaúchos, é o modelo para refugiados que, com as devidas adaptações, pode servir para os que perderam tudo ou quase tudo com a tragédia recente.
Um ponto pouco notado pelos entusiastas desta agenda é o quanto ela se beneficia da imaginação, da criatividade. É, no mínimo, um exercício interessante imaginar uma charter city para resolver o problema do subdesenvolvimento local. Um exercício interessante e, no caso do Brasil, mais que necessário.
Claudio Shikida é doutor em Economia e escreve semanalmente em “O que o Claudio Shikida anda lendo, meu Deus?!” (https://cdshikida.substack.com) e pode ser contatado em cdshikida@gmail.com. A Ciência Econômica é seu habitat natural.