Bela crônica de Salviano José de Souza, que retrata, com sensibilidade e emoção, as peraltices da infância que ele viveu na roça.
OS PERIQUITOS
O cacho de coquinho, amarelo e de dar água na boca, de longe chamava a atenção. O pé não tinha mais que cinco metros. Dava para subir e encher os bolsos sem ter que catar no chão.
Ao chegar perto do coqueiro, o casal de cabeça-de-coco voou numa barulheira de arrepiar os cabelos. Pousaram na árvore seca do outro lado do córrego. Não fosse a capoeira, eu era capaz de ir até lá dar uma estilingada neles, mas era melhor não; podia ter cobra.
Algum tempo depois, uma das maritacas voou para o toco de pau-d’óleo e ficou calada na ponta dele. Eu olhando…
Era capaz de ter ninho. Não demorou e ela entrou no buraco.
Tinha ninho lá! Isso eu tinha que ver. Esqueci as cobras, desabalei ladeira abaixo, cruzei o córrego e subi do outro lado.
No pé do toco, bati com a forquilha do estilingue e o periquito voou gritando lá de dentro.
Em dois tempos eu estava encarapitado no topo contemplando o ninho com três ovinhos. Desci arranhando pernas e braços e voei para casa.
Tinha que contar para minha irmã e traçar um plano para vigiar o ninho até os bichinhos nascerem e empenarem. A gente ia tirar os filhotes pra nós.
– Mãe, quantos dias galinha leva para tirar pintinho?
– Por quê? Você achou alguma galinha choca?
– Não. Mas e periquito, é a mesma coisa?
– Como é que vou saber? Nunca fiquei vigiando periquito chocar!
Lógico que minha mãe sabia; ela tava era com a paciência minguada de tanta pergunta que a gente fazia.
Mas não tinha importância, as vacas estavam no pasto daquela banda e todo dia, quando eu fosse buscar elas para apartar, ia dar uma espiadinha.
– Mãe, quantos dias filhote de periquito leva para empenar e voar?
– Uma semana ou mais, respondeu ela sem prestar atenção.
A semana demorou um mês para passar e eu passando no ninho todo dia pra conferir se já estavam empenados. Eram dois; um ovo gorou.
…………
Gastamos pouco tempo para vencer a distância de mais de quilômetro até o ninho. O único galho do tronco estava abaixo do topo; só minha cabeça chegava até no buraco.
Puxei o corpo o mais para cima que pude, prendi o tronco com as pernas e enfiei o braço. Era fundo o buraco e curto meu braço. E agora?!…
Desci, pensei, pensamos…. Quem sabe, enfiando uma varinha, eles agarravam ela com o bico! Então era só puxar.
Não deu certo… Depois de muito matutar resolvemos que o único jeito de chegar até os filhotes era fazer um corte na altura do ninho e tirar eles pelo buraco.
Naquele dia não dava mais. Até ir pegar o cotó de foice da minha mãe, voltar, cortar, tirar os filhotes e chegar em casa, era noite. Faltava coragem para tanto.
Aquela foi uma noite longa para nós. No dia seguinte, cedinho, lá fomos minha irmã e eu munidos de ferramenta e vontade de realizar a proeza: ter um casal de periquito e ainda por cima tirado por nós.
Pensar é uma coisa; fazer, outra bem diferente…
Não dava para subir com o cotó. Cortamos um cipó-de-são-joão, amarramos no cabo, prendi a ponta nos dentes e lá fui eu. Com uma varinha medi a fundura do oco do pau e marquei a altura de cortar do lado de fora.
Um pé no galho, a mão esquerda segurando no topo e na direita o cotó, comecei a cortar. A posição era muito ruim. Cansei rápido. Troquei de mão e de pé, mas não funcionou. Não dava para cortar de esquerda. O jeito era descansar.
Parei… Desci. … Descansei… Subi… Recomecei… Repeti isso muitas vezes, até conseguir um buraquinho. Lá estavam os bichinhos assustados com tanto barulho.
Aumentar o buraco para enfiar a mão era arriscar picar os filhotes. Solução? Cortamos um cipó, fizemos uma laçada e descemos por cima. Com jeito eu ia amarrar cada um deles e puxar.
Não deu certo, o cipó era duro e eu não conseguia pegar nada. Desistir? De jeito maneira! Achei um pau de embira, fiz uma cordinha macia e voltei ao trabalho.
Após algum tempo consegui laçar a cabeça de um filhote. Ele bateu tanto as asas para escapar que perigava destroncar o pescoço. Tinha que pegar no pé. Ficava cada vez mais difícil e eu cansado.
Com muito custo e a ajuda de uma varinha passada pelo buraco consegui laçar o primeiro e tirar por cima. O outro foi mais fácil. Troféu na capanga levada escondida, voamos para casa. A mãe ficou espantada.
– Onde vocês arrumaram isso?
– Ali no pasto, mãe.
Se falássemos que o nosso ali estava a mais de um quilômetro ela ia ficar brava. Atrasada, mas ia.
O caco de cuia com um pouco de capim e algodão já estava preparado para receber os filhotes. Ajeitamos eles ali e ficaram quietinhos. Não sei se por gostar ou de susto.
– Mãe, filhote come o quê?
– O que é que você come?
– Muuuiiita coisa!!!
– Muita coisa que é comida de gente, não?
– É!
– Então, filhote de periquito come o que periquito grande come!
– Ah, não! Vamos ter que buscar coquinho lá longe todo dia!
– Melhor devolver pra mãe criar, não? Lugar de bicho é no mato.
– Ah, mãe, mas a gente queria tanto ter um periquito! E se devolver agora, capaz que a mãe enjeita e eles morrem.
– Então vai pegar banana madura, amassa e põe no bico deles para ver!
Deu certo. Era só chegar a lasquinha de pau com a banana amassada perto que eles abriam o bico. Comiam até o papo ficar lumiando.
Cresceram, ou melhor, um cresceu e outro preferiu mudar de mundo a ser condenado a viver sem voar.
O que sobrou foi nosso xodó por muito tempo.
A gata pariu, os gatinhos precisavam aprender a caçar. Um dia a cozinha amanheceu cheia de penas verdes…
Salviano José de Souza.
Capitão Veterano do Exército, Bacharel em Letras pela PUC/MG. Avô de 3 netos, viveu infância feliz e sadia nas margens do Rio Borrachudo, cidade de Tiros, interior de Minas Gerais.
3 Comentários
😭 Oh que dó! Mas é assim mesmo.
Eu que morei na roça tanto tempo, vi várias dessas crônicas acontecer. Parabéns! Me vi em cada cena. Lindíssima!
O final do texto era um pouco diferente, mais violento. Li para os netos e eles acharam que era muita maldade com os bichinhos. Amenizei
Parabéns…excelente sua narrativa.
Foi uma viagem de volta à infância !