Recém empossado como presidente da Argentina, Javier Milei é um político carismático e tem sido chamado pela nossa imprensa como radical da extrema direita e ultraliberal por causa de suas propostas políticas para tornar a Argentina rica novamente. Mas no que consistem suas propostas e por que são consideradas radicais? Será que ele conseguirá implementá-las?
Primeiro, vamos tentar entender o que e como pensa o presidente argentino. Ele se define como libertário e também como anarcocapitalista, embora estas duas filosofias econômicas e sociais não sejam, a rigor, a mesma coisa. Libertários, e aqui uso a terminologia americana (na Europa são chamados de liberais clássicos), acreditam na soberania dos indivíduos, que devem ser livres para buscar a realização de seus planos não violentos de vida, o que tem a implicação de que usar coerção viola o mesmo direito que as outras pessoas têm. Liberdades individuais, neste sentido, não entram em conflito.
Libertários acreditam que a melhor forma de organizar uma sociedade próspera, pacífica e socialmente inclusiva é atribuir a cada pessoa o mesmo conjunto de direitos, ou liberdades negativas – negativas no sentido de haver proteção destes direitos contra invasão ou coerção alheia, e protegê-los. A origem desta ideia política de organização da sociedade decorre de uma evolução da forma de entender o mundo, que começa com base em princípios religiosos do mundo judaico-cristão e impregnou o pensamento político e econômico com o inglês John Locke (1632-1704), considerado um dos mais importantes pensadores do iluminismo e Adam Smith (1723-1790), economista e filósofo escocês considerado o “pai da Economia”.
De John Locke, o libertarianismo moderno incorporou a ideia de direitos naturais, que são os direitos à vida, à propriedade e à busca pela própria felicidade (também chamado de liberdade). De Adam Smith, o libertarianismo herdou duas ideias importantes. A primeira é a ideia de ordem espontânea de mercados, que diz que pessoas autointeressadas, em busca de seus objetivos não violentos de realização pessoal, acabam por promover ganhos para a sociedade como um todo. A segunda ideia é a de que os direitos naturais não são automaticamente garantidos e “homens de negócios” podem não ter o interesse de fazê-lo apropriadamente. Isto quer dizer que Adam Smith entendeu que era uma função legítima de governo, ou de estado, a proteção destes direitos. Esta função seria então importante para complementar o funcionamento de mercados. O estado, então, para que contribuísse para a promoção de uma sociedade melhor, não deveria substituir os mercados, mas simplesmente complementá-los com tarefas que os mesmos não conseguiriam realizar apropriadamente. Ajudar a proteger propriedade privada, reduzir criminalidade, garantir a santidade de contratos privados e prover um nível mínimo universal de educação eram vistos como funções essenciais de governos por Adam Smith.
Anarcocapitalistas acreditam que governos não são necessários para complementar mercados. A base teórica deles vai da teoria microeconômica tradicional à filosofia, que buscam a construção de modelos teóricos que dêem a sustentação lógica de uma sociedade anarcocapitalista.
Ocorre que o presidente Milei conhece bem a literatura pertinente. Foi professor de economia, quando ministrou disciplinas como teoria macroeconômica, microeconomia, e teoria do crescimento econômico e matemática para economistas. Tem boa exposição também à filosofia da liberdade, sendo conhecedor das obras de autores importantes como o Nobel em economia Friederich von Hayek, o economista Ludwig von Mises e o filósofo Murray Rothbard, todos vinculados à Escola Austríaca de Economia.
Da teoria à prática. Toda esta digressão a respeito do pedigree intelectual do presidente Milei tem pouca relevância para o cidadão comum, que está preocupado em prover um melhor padrão de vida para sua família e levar uma boa vida, no sentido de conseguir realizar seus objetivos de vida. A relevância de suas ideias está na capacidade de transpô-las como políticas de governo que de fato melhorem a vida das pessoas na sociedade argentina, e aí reside a força das ideias liberais. Vasta evidência empírica acumulada, a partir de evidências históricas, analíticas e estatísticas aponta que, de fato, a promoção de liberdade individual nos termos acima descritos leva a sociedades mais pacíficas, prósperas e inclusivas.
Possivelmente as evidências mais sólidas e fáceis de entender sejam os “experimentos de laboratório” feitos no séc. XX, como a separação da Alemanha em duas (a ocidental, capitalista, e a oriental, socialista) e a separação da Coréia em duas (a do Sul, capitalista, e a do Norte, socialista). Em poucas décadas, a diferença de resultados dos dois modelos ficou claramente visível em praticamente todos os aspectos da vida em sociedade que as pessoas valorizam (renda, saúde, educação, liberdade de expressão, direitos individuais, etc.). Sobre as ideias anarcocapitalistas, seu sucesso empírico pouco foi observado porque não há bons registros históricos de sua aplicação. E aí vale a máxima estatística de que ausência de evidência de eficácia não é a mesma coisa que evidência de ausência de eficácia, coisa que nossas autoridades sanitárias e políticas deveriam saber durante o período da pandemia.
Adicionalmente, as ideias do presidente Milei a respeito da estabilidade macroeconômica nas suas dimensões cambial, monetária e fiscal também são boas, a considerar a literatura teórica pertinente e a experiência empírica de vários países. Ele propõe a dolarização da economia argentina e o fechamento do seu Banco Central como medidas para impedir o financiamento inflacionário do déficit público e fortes medidas de contenção fiscal. Cumpre lembrar que há países aqui na América Latina que têm suas economias dolarizadas, uma sem Banco Central (Porto Rico) e outra com Banco Central (Equador), além dos países da União Monetária Europeia, que abdicaram de seus Bancos Centrais nacionais e adotaram um Banco Central supranacional. Sobre medidas de contenção fiscal, Milei também está na direção correta ao enfatizar redução de gastos públicos em vez de aumento de impostos: vasta evidência empírica sugere que países que buscam conter a expansão e descontrole da dívida pública com corte de gastos têm redução do PIB e aumento do desemprego menores do que os países que o fazem com aumentos na tributação[1].
Se as ideias defendidas pelo presidente Milei são, em geral, lastreadas em sólida teoria econômica e filosofia política, isto significa que elas darão os resultados pretendidos? Não necessariamente, pois como se diz, o diabo está nos detalhes. A Argentina vem de mais de setenta anos de declínio econômico, sendo que de 2011 a 2022 sua renda per capita caiu em quase 10%, segundo dados do Banco Mundial. A Argentina faz políticas econômicas e sociais erradas persistentemente, e o faz por que existem grupos de interesse e de eleitores que se beneficiam disto. Central para o peronismo, que até hoje tinha a hegemonia na aplicação de políticas econômicas, é a ideia de protecionismo e política industrial, que é antagônica ao ideal de liberdade de Milei. Adicionalmente, temos o fato de que em 2023, 40,1% da população argentina vive abaixo da linha da pobreza, o que torna este grupo dependente de assistencialismo estatal, aumentando a demanda por transferências de renda e maiores gastos públicos. Para uma economia em declínio, sem capacidade de aproveitar o potencial criativo de seus cidadãos e gerar riqueza, o assistencialismo estatal passa a ser o último recurso de uma população pauperizada.
O desafio que o presidente Milei enfrenta é grande e é bem representado pelo famoso problema dos caranguejos no balde: quando um deles chega à borda, os outros, tentando escapar também, se agarram nele e o puxam de volta. Setenta anos de declínio econômico revelam que as instituições políticas e econômicas da Argentina não apenas são inadequadas, mas também são difíceis de reformar. Se os grupos que se beneficiam privadamente do declínio social do país tiverem poder político para banir reformas, provavelmente o farão. Desejo que suas políticas consigam ser aplicadas consistentemente na Argentina, que ela volte a prosperar com inclusão social e que ela sirva de exemplo e modelo para nós brasileiros, pois temos exatamente o mesmo problema a resolver. Com um pesado agravante: somos mais pobres e não temos lideranças carismáticas com o ideário e o preparo intelectual do presidente Milei.
Uma boa aproximação de prosperidade econômica é a iluminação noturna de uma sociedade. Na figura acima, vemos a península coreana, onde a Coréia do Sul (sudeste) é a região iluminada, enquanto que a região escura antes do continente é a Coréia do Norte. Esta foto é uma magnífica evidência de como as ideias de liberdade funcionam na prática!
[1] Alesina, A., C. Favero e F. Giavazzi. Austerity: When it does and when it doesn’t. Princeton University Press: 2020).
1 comentário
Dale, Milei. Ótimo artigo. Parabéns