Conquanto nem todos tenhamos sido criados na roça, as crônicas do Capitão José Salviano de Souza descrevem sua infância vivida na fazenda do pai, nas margens do Rio Borrachudo, cidade de Tiros, interior de Minas Gerais, com tal sensibilidade e emoção que despertam em nós, seus leitores, doces lembranças de nossa infância.
Vemos, em suas crônicas, a criança inocente, arteira e aventureira que foi o Salviano e a bela infância que teve.
OPERAÇÃO TATU
– Mãe, pode buscá lenha?
– Não, o sol tá quente.
– Tá muito não mãe, e a gente vai na sombra.
– A gente, quem?
– Nois treis.
O “Nois treis” era nada mais que eu e duas irmãs. Sete, cinco e três anos, a escadinha que fazia parte das preocupações diárias de minha atarefada mãe.
Atrasar as obrigações, até que ela não atrasava, porque a gente vivia por ali mais ou menos soltos e entretidos com qualquer coisa, como é de hábito das crianças da roça.
– Pode não, ainda mais com essa menina que nem consegue andar direito. Tem muita cobra no mato.
– Tem cobra não, mãe! O pai falô que depois que o João Cruz benzeu, elas fugiu tudo lá pra capoeira, só ficô as cobra de vidro e as cipó. Elas têm medo da gente.
– É, mas vocês esqueceram da “Mamona”? Ela tá solta por aí.
– Que que tem? – Tá parida-de-novo. Vai que ela escondeu bezerro por aí e vocês chegam perto da moita que ele tá!
Os adultos têm mania de achar que criança não pensa para fazer as coisas. Puro engano. O que normalmente as crianças não fazem é avaliar possibilidades com precisão. Quando vêm com pedido para fazer algo, com certeza já imaginaram o como fazer e qual será o resultado. As alternativas, para o caso de a empreitada não sair como planejada ficam para depois.
Demover criança de seus planos e desejos, se não for diplomática e sabiamente conversado, acaba gerando tensões e reações desagradáveis, como choro, birra, ou emburramento.
– Mãe, a senhora esqueceu que as vaca parida fica no pastinho de baixo? A Mamona, nessa hora, tá lá na aguada da gameleira, bem remoeno capim e o bizerrim deve de tá bem amoitado debaixo dos sapexe.
– E onde é que vão pegar lenha?
– Lá atrás do murumdum.
– Mas lá não tem lenha não, seu pai juntou tudo.
– Tem sim, o jacarandazinho seco caiu com o vento.
Derrubados os últimos argumentos, os três lenhadores olhavam ansiosos para a mãe prontos para explodir em alegrias, pois não esperavam outra resposta que não um sim.
A concessão veio, não sem recomendações: calcem as precatas, olhem onde pisam e não demorem muito, senão vou atrás com o chicote na mão.
– Ah mãe, mais uma coisa. Vou leva o cotó.
Já com a paciência minguando pelo tempo gasto respondendo tanta pergunta, a mãe autoriza a aventura, recomendando não perder o pedaço de foice.
Confirmando a teoria de que criança planeja as coisas e sempre tem certeza de que tudo vai sair como pensou, os três saíram correndo, apanharam o cotó que já estava escondido no meio das plantas da porta da sala e marcharam rumo ao jacarandazinho-seco-derrubado-pelo-vento-atrás-domurumdum.
Imprevistos acontecem.
Um filhote de tatu-galinha, que provavelmente havia gastado bastante saliva dobrando sua mãe para deixá-lo sair desacompanhado em plena luz do dia para comer umas formiguinhas ao pé do jacarandazinho-seco-caído, cruzou caminho com os três catadores de lenha.
O espanto foi simultâneo e bilateral. Pensar rápido e decidir fez a diferença.
Impossível saber em que o tatu se baseou para tomar sua decisão, mas o que ficou claro foi que ela chegou um pouco tarde. Quando o tatu-criança percebeu que seus planos ruíam, dois lenhadores mirins corriam em sua direção e alcançá-lo foi questão de alguns metros e tombos ladeira abaixo.
Presa na mão e coração a mil os aventureiros voaram para casa. Entraram gritando pela porta, mas a mãe não estava.
Frustração… Decepção e alegria em criança costumam ser como sombra de nuvem: pode estacionar e deixar o ambiente sombrio, mas no mais das vezes passa rápido. Esta se foi como chegou.
A sala de assoalho, com apenas duas portas e desprovida de móveis, virou arena.
O tatu bem que tentava escavar e, nada conseguindo, rodava o cômodo em busca de saída ou esconderijo. Perseguido de perto, era virado de costas pelas crianças sempre que alcançado. Até que, cansado, se encolheu em um canto.
A brincadeira perdera a graça, mas inventar outra foi questão de segundos. Formou-se um tribunal para decidir a sorte da vítima.
– Mata ele, a mãe cozinha e a gente come, falou um que correu até a cozinha e veio com a faca.
– Segura a mão dele que eu sangro. É igual matá porco. Eu já vi o pai fazê isso.
A menor desandou no choro, era muito pequena para suportar os horrores da guerra; seu conceito de vitória não abrangia o aniquilamento da outra parte.
Decidindo rápido, o líder tomou o toquinho de escorar a porta da sala e com golpe certeiro abateu o tatuzinho.
A curiosidade estancou o choro da caçula. A faca não entrava na pele do bicho de maneira alguma.
Rápido, o líder correu até o quarto de onde veio com o aparelho de barbear do pai. Desmontou, tirou a gilette e largou as peças por ali.
A operação “abrir-tatu” não era tão fácil como antevista: dois puxavam as patinhas do defunto para os lados e outro ia descolando o corpo do casco.
Após algum tempo, o destrincho estava concluído com sucesso e muita sujeira: sangue no chão, na parede, no tamborete, nas mãos, na roupa e até no rosto.
A mãe, que tinha saído atrás de grito de galinha que acabava de botar, voltou com as mãos cheias de ovos e, quando viu a sangueira, ficou branca, deixou os ovos caírem e quase sem voz perguntou:
– Quem machucou?
– Foi ninguém não, mãe. Foi o tatu-galinha que nois matô. Faz ele pra nois, faz?
Depois de chupar os últimos ossinhos do tatu e lamber os beiços, alguém perguntou:
– Mãe, amanhã nois pode caçá mais tatu?
– Pode mas é buscar o meu cotó de foice que ficou lá no mato, senão o chicote vai chiar!
Era uma vez… três meninos sonhando com cozido de tatu e tendo pesadelos com cotó de foice e chicotadas nas pernas e no traseiro.
Salviano e suas irmãs. A mais nova
não havia nascido na época da caça ao tatu.
SALVIANO, J. Souza
Capitão Veterano do Exército, Bacharel em Letras pela PUC/MG. Vida realizada como profissional, como avô, pai e criança feliz.
2 Comentários
Legal a narrativa do caça ao tatu
Maravilhosa a crônica da Operação Tatu. Tambem sou cria da roça. Me vi em cada cena. A foto de Salviano e as irmãs é linda. Esse corte cabelo e as roupinhas…
Amei!