“Os exércitos marcham sobre o estômago”
Os grandes comandantes sabiam disso e o praticaram, ou não teriam conquistado coisa alguma. Coube, porém, a Napoleão firmar o registro.
A afirmação nasceu em meio a uma guerra de conquista. Sem nenhuma jihad ou cruzada em vista, mas planejando uma marcha de autossuperação (guerra a limites pessoais) e evolução espiritual, levei o conselho em conta.
Santiago de Compostela: peregrinação de fé e resistência. Por que não a mesclar com gastronomia, tornando a jornada “fidogástrica”? (*)
Além de básicos para sobreviver, comer e beber rendem prazer, conversa e são itens obrigatórios no planejamento do peregrino.
A internet apequenou o mundo e explorá-lo na tela do celular ou computador tornou-se corriqueiro. Fácil saber o que se faz, fala, bebe e come em cada recanto.
Estimulado, busquei na internet informações relacionadas ao Caminho de Santiago e selecionei itens a entrar no meu planejamento: jamon pata nera; pulpo de Melille; vinho Albarino e queijo tetilla (sonhos de prazer).
Perde tempo e energia quem vai à fonte e dela não usufrui, seja por menosprezo, seja por incapacidade. A comunicação é essencial para o aproveitamento integral da viagem.
Um grande comunicador brasileiro do milênio passado propalava: “Quem não se comunica se trumbica” (Abelardo Barbosa – Chacrinha). Leio francês, italiano e espanhol, mas falar está além de decifrar caracteres. A Galícia mistura espanhol com português e salada linguística é sinônimo de dialeto, terror de poliglotas. Por não fazer ideia do que era o galego, eu precisava me inteirar e a literatura me deu rumo.
“O homem que sabia javanês” (Lima Barreto) (**) foi a pista. Se Castelo conseguiu vaga no funcionalismo público e até ascensão à diplomacia embromando com uma língua estranha, eu seria capaz de me passar por falante de galego; era só questão de aplicar procedimentos e manter foco no objetivo. Assimilei o básico do vocabulário e confiei na minha capacidade de improvisação.
A peregrinação embalada por chuva, frio, neve e vento era temperada com vinhos e cervejas acompanhados de excelentes tapas (***) de frutos do mar, castanhas e pata negra.
Alto do Cebreiro – Galícia
Ao atingir o Vale de Cacabelos, me extasiei com a paisagem: vinhas, vinhas e mais vinhas… a fonte do vinho (ou seria a pátria de Baco?). A simples visão fez-me subir o Albarino à cabeça sem tê-lo ainda degustado…
Região de Cacabelos
No hotel, após relaxante banho quente e lavagem da roupa (o peregrino leva apenas uma muda, daí lavar roupa todo dia), saí à procura das iguarias.
No Mercado, vinho à vista, queijo brincando de esconde-esconde. No balcão de laticínios (de cair o queixo de mineiro queijeiro), como cachorro de rua na frente de assador de frango (televisão de cachorro) estacionei e fiquei a ler rótulos: muitos, muitos, menos o tal tetila. Dirigi-me à atendente da padaria (hora de testar o espanhol):
– Losiento, tienes tetila?
Após brejeiro e duradouro sorriso, ela conseguiu falar:
– Como non, teño dous!
– Puedo ver-los? Indaguei descontraído.
– Aqui no é posible! Ainda rindo…
Aquilo (o sorriso) me intrigou, mas mantive o foco e insisti no queijo.
– Donde puedo ver-los?
– Agarda un momento e xá cho mostrarei! (****)
Apesar de capenga, meu galego permitia entender; só não me dei conta que eu falava em espanhol.
Solícita e sorridente a mocinha guiou-me de volta ao balcão de queijos.
– O queixo é iso! (*****)
Mansa e suavemente o espírito do entendimento desceu sobre o peregrino e traduziu o sorriso de gozação da atendente. O queijo, similar ao “cabacinha” mineiro, só que sem o pescoço, tem o formato sensual de um tenro mamilo (tetilla, em espanhol).
– Veni, vidi et victus sum! Capisce? (****)
Ela entendeu, riu descontraída, eu peguei carona no sorriso dela e desculpei-me pela salada de línguas sem o ingrediente principal, o galego.
– Non es único,nin serás o ultimo, passa! (*****)
– Grazas! (afinal falei na língua da Galícia)
– Disfrute!
Vinho e queijo na mão, tornei ao hotel feliz como menino que ganhou pirulito.
Harmonização divina até a última gota e última fatia…
Embalado pelo álcool do Albarino adormeci e, de madrugada, me vi envolvido em outra guerra. O inimigo, gigantesco tetila, esmagava meu estômago. Aflito, lutei até despertar.
Guerra psicológica, apenas um pesadelo…
O vinho e o queijo, recomendo. (moderados)
A trapalhada, deixo de lição para os poliglotas, mas aconselho provocá-la, pois, compensa.
Apesar das chuvas, ventos, neve, frio intenso e da caminhada (270Km/10 dias) cheguei inteiro a Santiago. Não afirmo, no entanto, que tenha sido por efeito do combustível Albarino.
Pequeno vídeo sobre a peregrinação até Santiago de Compostela:
Depois de completar o trajeto de 270 quilômetros, em frente da Catedral de Santiago o autor mostrou que estava inteiro e comemorou a chegada de modo bem militar. Detalhe: Salviano tinha 72 anos na época.
(*) Fidogastro: neologismo do autor para expressar sua romaria de fé (igrejas) e gastronomia (bares e restaurante).
(**) O autor lança mão da literatura de Lima Barreto (O Homem que sabia javanês) para contar seu incidente no Caminho de Santiago dando ao seu relato o título de “O Homem que falava Galego”. Ambos tratam de improvisação línguística. Castelo, personagem do livro, falava javanês.
(***) Tapas: petiscos ou entradas da culinária espanhola, servidos em bares e restaurantes para acompanhar bebidas.
(****) “Agarda un momento e xá cho mostrarei!” “Aguarde um momento e já lho mostrarei” (literal) ou “um instante e eu te mostro” (simplificado).
(*****) “O queixo é iso!” “O queijo é este”. O galego não usa o ‘J’; em substituição entra o ‘X’, daí xá, xeito, Xuan e queixo.
(******) “Veni, vidi et victus sum! Capisce?” “Vim, vi e fui vencido! Entendeu?” A célebre frase latina da vitória de Júlio Cesar aparece modificada para expressar o fracasso do narrador (“fui vencido” em vez de “venci”), que se complica mais ainda com a pergunta, em italiano, se ela havia entendido. Por isso, o narrador viu-se obrigado a se desculpar pela salada linguística (espanhol, latim e italiano).