A crônica de Higino Veiga expõe a beleza da amizade e da lealdade do cão de guarda com seu dono.
“O lendário cão Argos, conhecido pela sua velocidade e inteligência, esperou 20 anos pelo retorno de seu amado dono, Ulisses, a Ítaca.
Quando se aproximou de sua casa, Ulisses encontrou Argos velho, abandonado, maltratado, cheio de parasitas, vítima de malfeitores que tomaram sua terra, ameaçavam e matavam quem ousasse enfrentá-los.
O único que reconheceu Ulisses disfarçado de mendigo foi seu cão Argos”. (Trecho da Odisseia, de Homero).
Hoje, um amigo enviou-me, via Whatsapp, o texto em epígrafe, que cita a história de Argos, o cachorro de Ulisses, a qual consta em trecho da “Odisseia”, de Homero.
O texto me fez lembrar que também tive um amigo, à semelhança de Argos: o Lorde. O Lorde apareceu em Terenos, cidade onde fui criado e vivi minha infância e adolescência. Alguém o abandonou ainda novo ou ele fugiu de alguém. Bem recebido e bem tratado em casa, virou agregado.
Nosso quintal tinha 2 hectares, com uma face para a rua onde se iniciava a “grande Terenos”. Nele, fiz uma casinha de pedaços de tijolos, uns do quintal e outros recolhidos de uma construção próxima, para instalar o Lorde.
Lorde tinha a cor comum, caramelo, e alguns traços de pastor alemão. Era esperto e atento.
Ele cuidava dos duzentos metros do quintal que davam pra rua: não permitia que cavalos ou bois, que transitavam livremente pelo centro da “Grande Terenos”, forçassem a cerca de arame liso. Era grande o número de animais soltos pela cidade, sem que se soubesse o dono. (Hoje animal não tem dono, tem tutor).
À noite, ninguém se atrevia a encostar-se no portão da casa, pois Lorde protestava veementemente com seu latido ameaçador.
Mudamos para Campo Grande e o Lorde acompanhou a família.
A casa em Campo Grande tinha quintal pequeníssimo, mas o Lorde teve sua casa e manteve sua função de guardião.
Como mudamos para a periferia da periferia da cidade e nosso vizinho tinha uma chácara, ainda apareciam cavalos e bezerros soltos. Era só mexer no portão ou na cerca e o Lorde cumpria sua função.
A vida seguiu, e eu fui para a Academia Militar das Agulhas Negras em 1968. No primeiro ano do curso, voltei pra casa em julho. Nos outros anos, somente visitava meus pais nas férias de fim de ano. Além da grande distância de Resende a Campo Grande, sendo estrada de chão de Presidente Prudente a Campo Grande, o dinheiro curto exigia que eu economizasse para fazer apenas uma viagem por ano.
Em 1969, meus pais se mudaram para uma casa nas instalações da Igreja São José, no centro de Campo Grande. Meu pai foi contratado pela Diocese para ser “um faz tudo” e minha mãe, para limpeza da igreja. O Lorde mudou-se junto. Meu pai fez sua casinha bem na entrada do portão da casa. Seria o “Guarda do Templo”, diria um praticante da Arte Real.
Nas férias do primeiro ano, cheguei em casa de madrugada. Ao pressentir alguém mexendo no portão, Lorde veio como uma fera, latindo grosso.
Quando me reconheceu, não sabia se latia, se rosnava, se pulava em mim… vinha até o portão, ficava em pé, corria para a porta da cozinha como que querendo achar alguém para abrir o portão.
Veio o meu pai e ralhou com ele pelo barulho no meio da noite. Eu entendi a alegria do Lorde, que também era a minha. Deixei no chão minha mala azul-ferrete, uniforme de cadete, e abracei o amigo.
Lorde se comportava como um filhote: uivava, latia, corria como criança feliz. O tempo afastado dele permitiu-me notar o quanto meu amigo estava envelhecido. Atrapalhava-se com os ruídos, latia sem necessidade e já tinha dificuldade de ver até sua lata de água e de comida.
Em 1969, meus pais se mudaram para uma casa nas instalações da Igreja São José, no centro de Campo Grande. Meu pai foi contratado pela Diocese para ser “um faz tudo” e minha mãe, para limpeza da igreja. O Lorde mudou-se junto.
Na volta de férias do final do ano de 1969, ele já estava bem caduco. Seu olfato, já debilitado, custou a me reconhecer, mesmo eu o tendo eu chamado pelo nome.
Depois de me reconhecer, voltou a ser o cãozinho que grunhia e uivava ao reencontrar o amigo. Ele queria correr, mas não tinha mais senso de direção. Tive que abraçá-lo, acariciá-lo e, segurando em sua coleira, fomos caminhando juntos: Lorde de um lado e a mala do outro.
Chegou o ápice da minha vida acadêmica em 1971: a formatura de declaração de aspirante. Mãe e pai foram a Resende.
Terminadas as festas, agora com outra mala, e mais a espada de oficial, chegamos de ônibus em Campo Grande de madrugada.
Lorde repetiu tudo o que sempre fazia quando me reconhecia. As manifestações de amizade agora custavam-lhe muito mais esforço. Já tinha dificuldade de andar. Como eu, hoje.
Como mãe e pai estiveram fora de casa durante 6 dias, Lorde estava sujo. Depois do sono recuperado, dei um banho caprichado no amigo. Conversamos. Rimos. Brincamos.
No dia seguinte, Lorde não saiu de sua casinha. A mãe foi levar-lhe comida, mas Lorde estava duro. Meu amigo havia morrido. Ele estava apenas me esperando para se despedir de mim. Ainda bem ofereci-lhe carinho e atenção na chegada e em seu último banho.
O quintal da casa era grande. Eu lhe fiz uma cova na sombra de uma mangueira, para ali, junto de nós assim como fora durante a sua existência, encerrar sua vida. Segundo meu pai, Lorde viveu entre treze e quatorze anos.
E o destino, se é que existe, é um brincalhão.
Bem mais tarde, comprei um apartamento em um prédio na Rua Dom Aquino, Campo Grande, exatamente de frente para onde era a casa de meus pais. Hoje, a antiga casa tornou-se um posto de gasolina.
E no posto de gasolina, enquanto ali morei, estava o pé de manga e, com certeza, também estavam os restos mortais do meu amigo Lorde.
Um dia, mostrei ao dono do posto, que era arrendatário da Diocese, a mangueira sob a qual o amigo Lorde fora enterrado. Pude rever muitas vezes o local da morada de meu amigo.
Assim foi a vida do meu ARGOS: amigos para sempre.
Higino Veiga Macedo. Oficial do Exercito de Engenharia, Veterano da turma de 1971, da Academia Militar das Agulhas Negras. Nascido em Terenos, MS em 11/01/1948.
6 Comentários
São muito bonitas as histórias de um animal, ditos ” irracionais” com seus donos, especialmente, as dos cães.
Como posso reler um caso de Presença de Espírito acontecido entre o ex presidente Juscelino e seu amigo José Maria Alckmin?
Na página principal da revista, há espaço para “pesquisar”. Digite o nome “José Maria Alckmin” e a revista mostrará os textos em que o nome dele aparece.
Parabéns pelo texto! Linda história e belo relato! 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
Já me disseram que animais são melhores que gente. Sempre é uma boa leitura sobre esse amor dos animais com a gente. Quando menino, morávamos na Savassi, casa grande com terreiro e árvores frutíferas. Tínhamos um vira lata de nome Peri e até hoje nos meus 73 anos ainda me lembro dele.
Atraente a história do relacionamento do Lorde com seus acolhedores. A escrita fácil do autor colabora sobremaneira para tornar a leitura gostosa….