A Câmara dos Deputados aprovou, em 24 de agosto de 2023, o regime de urgência para um projeto de lei que prevê a criminalização da venda de ingressos por cambistas para eventos. Apelidada de “Lei Taylor Swift”, a PL 3120/2023, de autoria da deputada Simone Marquetto (MDB-SP), propõe a proibição da venda de ingressos de quaisquer eventos de diversão e lazer por preços superiores aos fixados pelas entidades promotoras do evento. A pena prevê reclusão de 1 a 4 anos e multa correspondente a cem vezes o valor dos ingressos anunciados pelo cambista ou apreendidos em seu poder. A lei foi motivada pela série de ocorrências de ameaças e intimidações feitas por cambistas na fila da bilheteria contra os fãs da cantora, quando da abertura da fila de ingressos pela promotora dos shows. Uma rápida inspeção no site oficial do evento, revela que os ingressos para os shows no Rio de Janeiro e São Paulo, em novembro, já se encontram esgotados.
Em virtualmente todo o mundo existe a prática de cambismo, onde cambistas (ou brokers) compram um grande número de ingressos ao preço corrente com a expectativa de revendê-los futuramente a um preço maior. Trata-se, portanto, de um mercado secundário e, também virtualmente em todo mundo, existe a ideia de que é necessário regulá-lo para evitar danos aos promotores ou ao público do evento. Nos EUA, também há problemas com a venda de ingressos para shows da turnê de Taylor Swift. A elevada demanda por fãs e cambistas teria levado a venda online a travar, fazendo com que a empresa de venda de ingressos Ticketmaster cancelasse a comercialização.
Segundo a revista Rolling Stone, o cancelamento de venda antecipada de ingressos levou o Comitê Judiciário do Congresso Americano a marcar uma audiência pública para investigar o monopólio da Ticketmaster na venda de ingressos no país. Na Austrália, associações de consumidores clamam por leis contra o cambismo, motivados pelo fato de que, pouco tempo depois da abertura de venda antecipada pelo site oficial da turnê The Eras Tour da cantora Taylor Swift previsto para o início de 2024, vários sites na internet, como a plataforma digital de revenda de ingressos Viagogo, já vendiam os ingressos a preços de 150% a 240% maiores do que os ingressos mais caros da bilheteria.
Será que a ideia de que os cambistas realmente prejudicam fãs e promotores de eventos é correta? Em se tratando de um mercado secundário, economistas têm algo a dizer. Uma interpretação negativa é a de que o cambismo representa apenas uma atividade de caça à renda (chamada em economia de rent-seeking), desviando renda de fãs-demandantes e promotores-ofertantes para uma terceira parte, os cambistas, que em nada contribuem para a atividade. Certamente existe algo de caça à renda no cambismo, mas em se tratando de um mercado muito ativo no mundo todo, vale a pena tentar entendê-lo melhor.
O cambismo certamente faz com que alguns fãs paguem preços mais elevados do que pagariam de outra forma. Mas em troca de preços elevados, eles podem obter os ingressos que desejam, quando os desejam, sem esperar em filas ou competir para estar entre os primeiros a comprá-los online num determinado momento. Não são todos os fãs da Taylor Swift que podem ou têm a disposição de enfrentar longas e demoradas filas em certas datas para adquirirem seus ingressos.
Filas, de forma geral, são uma forma de racionamento e raramente são a melhor formas de alocar os bens. Os primeiros da fila não são necessariamente os fãs mais ardorosos, que podem estar entre aqueles que não têm disponibilidade de tempo para enfrentá-las. Outra forma de racionamento é via o uso de preços de mercado, onde os consumidores revelam sua disposição de pagar pelo bem ou serviço em questão. Com cambismo, filas longas são substituídas por preços mais elevados. Entretanto, preços elevados neste mercado secundário não são culpa dos cambistas, mas de preços oficiais baixos e/ou reduzida quantidade ofertada em relação à demanda.
Se o problema que gera o mercado secundário de cambismo é o preço baixo e/ou oferta reduzida, pode-se perguntar por que promotores de eventos muito frequentemente praticam isto. Promotores de eventos têm dois problemas centrais a resolver: O primeiro é o fato de que consumidores desejam participar de eventos com muita audiência e não gostam de se ver em eventos vazios de público. Neste caso, preços baixos ajudam a criar grandes plateias e aumentar a demanda. Cambistas (ou brokers) também ajudam ao comprar grandes lotes de ingressos antecipadamente. O segundo problema é que tipicamente grandes eventos exigem muito planejamento, como aluguel de estádios ou espaços para concertos, o que significa desembolso antecipado para fazer frente a uma série de custos potencialmente elevados e, portanto, existe a necessidade de antecipação de receitas. Novamente, cambistas ajudam a resolver o problema dos promotores.
Adicionalmente, há a possibilidade de decisões estratégicas dos promotores ao estabelecer preços baixos. Bandas famosas, como U2 e os Rolling Stones, há décadas fazem turnês com estádios lotados e legiões de fãs dispostos a comprar ingressos a preços maiores mas que no entanto ficaram de fora do espetáculo. Como esta situação é recorrente para estas bandas, por que elas não simplesmente aumentam os preços dos ingressos e lucram mais? A resposta é estratégia de discriminação de preços. Os Stones há décadas discriminam preços para selecionar a plateia. Preços baixos na bilheteria do show atraem um público mais jovem que tem tempo para enfrentar filas mas tem pouco dinheiro, preços mais altos na mão de cambistas alcançam fãs que já têm rendas mais elevadas. Ocorre que são os fãs mais jovens que gastam dinheiro com merchandising da banda (CDs, camisetas, adesivos, etc.), o que confere uma receita adicional. Adicionalmente, os fãs jovens com pouco dinheiro em alguns anos podem se tornar fãs mais velhos com maior disposição de pagar para assistir ao show. Vale a pena atraí-los aos shows hoje com a expectativa de que voltem amanhã! Ora, como os Stones têm fãs de várias gerações que os acompanham ao longo das décadas, parece que esta estratégia de discriminação de preços é eficaz para garantir lucros maiores ao longo do tempo.
De maneira geral, pode-se dizer que o mercado secundário de ingressos, que conta com a presença de cambistas e de brokers, melhora a situação tanto de fãs quanto dos produtores. Leis que proíbem ou até criminalizam estas atividades podem produzir efeito contrário ao pretendido, ao suprimir importantes serviços providos por este mercado adicional. Quando se deseja regular ou legislar sobre um mercado, é importante saber, antes de mais nada, o que motiva produtores, consumidores e outras partes envolvidas. No caso de cambismo, a origem deste mercado secundário reside na decisão dos promotores de eventos de trabalhar com preços baixos e/ou oferta reduzida, decisão esta que pode ser estratégica para motivar mais consumidores a participar dos eventos. Legislação com criminalização pode ser apenas uma ideia muito ruim.
3 Comentários
Sensacional o artigo.
Visão ampla de economista, que aborda o assunto em todos os seus aspectos e mostra a bobagem de deputados que propõem projetos à luz de fatos do momento (casuísmo).
Esse é um ‘mercado’ que em nada afeta os custos do evento. Muito bem escrito e bem delineado. Ganhei ingresso para o Show do Paul McCartney, onde tive um visão privilegiada e camarim confortável. Eu diria quase vazio com petiscos e bebida à vontade. E confesso que para a plateia que via o show de longe, deveria ser muito melhor. A sensação que tive, foi a de ver um show na TV de casa. Estou me sentindo uma mal agradedecida, mas fazer o quê? O que sinto é que as grandes empresas compram ingressos e camarins a peso de ouro e isso paga boa parte do custo do show. Bom mesmo é a energia dos que pagam o ingresso barato e pulam feito loucos a 1 km de distância do palco. Esses são os verdadeiros fãs que compram bilhetes da mão de cambistas, que também defendem seu negócio que só acontece nessas ocasiões. Deixem os cambistas,ou passem a vender ingresso com CPF na internet. Há boa estrutura e logística para atender a demanda? Gostaria de ver…
Excelente artigo, pois traz diversas lógicas possíveis para analisar prós e contras. Para o leitor, facilita enxergar panoramas não imaginados para antecipar prováveis consequências que somente quem tem grande capacidade analítica e muito estudo e pesquisa pode oferecer. Parabéns!