Todo judeu sabe a importância do Mar Vermelho e do Sinai na existência de seu povo. Houve quem desejasse voltar às cebolas do Egito e quem reclamasse da dureza da caminhada e a estes foi negado entrar na Terra Prometida.
Foi-lhes recomendado nunca esquecer o significado dos fatos e religiosamente ainda os celebram.
Entrar para a escola é o primeiro passo de um êxodo e não deveria ser esquecido. Lembro-me do meu primeiro dia de escola e sigo caminhando, pois a conquista acontece no dia a dia.
Aos oito anos, os obstáculos para eu não estar na escola eram específicos: 12 Km a andar diariamente; falta de companheiros de caminhada; atividades pós escola.
Não sou bom contador de histórias, mas relato os preparativos para o primeiro dia de escola, O BANHO ESCOLÁSTICO.

A minha mãe é artista, faz duas e até três coisas ao mesmo tempo sem petecar nada.
– Não põe fé? Olha só… Prepara o almoço e comanda, à distância, uma operação “banho para a escola”: eu no quarto dentro da bacia d’água e ela no fogão, dando as ordens:
– Lava os olhos, tira a remela, esfrega o pescoço e atrás da orelha!
– Já esfreguei e lavei!
– Esfrega mais!
– Tá ardendo, tá limpo!
– Lavou dentro da orelha?
– Não, mãe, entra água no ouvido!
– Entra não, entorta o pescoço e lava o de baixo, depois vira.
…………………………..
– Pronto mãe, terminei! – Agora fica de molho mais um pouco e esfrega perna e pé pra tirar o macuco!
– Mãe, “o que segura o pau é a casca”, diz o pai.
– Desculpa pra não tomar banho, isso sim, lava direito!
Meia hora depois saio do quarto: pés descalços, calça curta acima do joelho, uma camisinha que não acompanhou o crescimento, cabelo penteado de lado igual bezerro que a vaca lambeu e cara de menino que ganhou pirulito.
Ela inspeciona, aprova e pergunta:
– Uai, cadê o suspensório?
– Menino de escola não usa este trem, meu pai não me deu uma correia, dei um jeito.
– Que jeito?
– Debaixo da camisa, mãe!
– Vai dá certo não, resmunga ela.
Esse “vai dá certo não” só fui descobrir ao fazer as necessidades.
Precisei tirar até a camisa. Quase não deu tempo, mas a vergonha de vestir calça de suspensórios não passei.
– Já arrumou “os trem” de escola?
“Os trem” eram: uma capanga de algodão e dentro a lousa, o lápis, o caderno e a cartilha da LILI. Tudo pronto, visto e revisto pelo dono e pelas irmãs que ainda não podiam ir pra escola.

– O almoço tá pronto!
– Num falei que ela dava conta de tudo?!
– Vem comer e engole sem mastigar, senão vai atrasar!
Nem precisava falar, limpei o prato em dois tempos.
– JÁ CA-BÔÔ!!!
– Vou voltar varado de fome, né mãe!
– Acha que esqueci da matula? Diz entregando uma capanga, dentro um naco de requeijão na palha de milho e outro de rapadura.
– Do outro lado dos “trem-de-escola”, se desembrulhar não suja, recomendou.
Mais uma lembrança:
– Põe o casquete, se não o sol cozinha sua moleira.
Capangas nos ombros, pés na estrada, fui buscar o segredo das letras, coisa que pensava conseguir no primeiro dia.
……………………………….
As capangas ficaram pra trás. A caminhada? Continua… Há ainda segredos pra decifrar…
A entrada na terra é difícil, a conquista não tem fim…
Na pessoa de minha mãe, que conseguia preparar almoço com tempero inigualável, comandar o filho no banho, orientar o filho na maneira de lavar as orelhas e as “partes baixas”, arrumar seus “trem” da escola na capanga e ainda tomar conta de minhas irmãs menores, homenageio as mães e sua capacidade única de fazer múltiplas coisas ao mesmo tempo.

(*) Entrada no altar da ciência.
10 Comentários
Matula…. Há quanto tempo não lia e ouço o termo… Dei um salto de 76 degraus de idade para o degrau de quatro cinco…. “Não esqueça a matula!!!! Valeu.
Memória boa a do Capitão,
Ainda bem pois o caderno usado na época não permitia fazer revisão para a prova.
Quanto a “matula” garanto que ele nunca esqueceu, talvez por isso quando visita sua Terra Natal vai embora carregado das delícias de lá.
Parabéns meu irmão sempre apaixonado pela leitura e escrita seguido pela curiosidade de conhecer coisas novas e desafiadoras !!
Matula…. Há quanto tempo não lia e ouço o termo… Dei um salto de 76 degraus de idade para o degrau de quatro cinco…. “Não esqueça a matula!!!! Valeu. Higino
“A minha mãe é artista, faz duas e até três coisas ao mesmo tempo sem petecar nada.” A descrição das mães do tempo, a q se refere o Capitão, é muito fidedigna. Todas as mães daquele tempo eram artistas. Vi no seu relato a minha mãe, Maria das Mercês. Era uma azáfama, sem fim. Os termos usados na época… todos aqui. Deu saudade na hora.
Vejo nessas letras desse mineiro inspirado a mais jenuina arte da prosa e do verso caipira que emanam do pensador bem letrado deixando fluir o que lhe vem na alma. Salviano sabe como ninguem expressar a riqueza de nosso vernaculo desde as raizes mais genuinas ao sofisticado linguajar.
Ao ler textos seus, inevitavelmente somos levados a recordar nossa propria infancia e, quem sabe ate ensair alguns registros de nossa propria infancia. Assim e que ele me fez lembrar de pelo menos duas fases de minha infancia, la no bem distante Roraima, o mais cententrional dos Estado brasileiro, antigo Territorio Federal, meu torrao natal onde, na primeira fase se desenrola na Fazenda Nova Vista fundada por meu pai Antonio e zelada pela labuta diaria de minha mae Dona Clarice e mais cinco de meus irmaos, naquelas savanas sempre verdejante recortada por igarapes serpenteantes sombreados em suas margens por buritizais abundantes e generosos em seus frutos. A lida era intensa, pelo que me lembro, acordava as quatro da manha, antes do sol nascer, para a ordenha das vacas e dar de mama aos bezerros, depois levando o leite para que fosse preparado o primeiro cafe da manha, depois eh tratar dos cavalos com um banho e, a final, de volta a casa sede aquela mesa repleta para o desjejum.
Em seguida encher os tambores de agua na cozinha para as fainas do dia das minhas irmas sob a batuta e o tralalho meticulos de minha mae.
Agora com musculos aquecidos e fortalecidos seguiamos eu e meus irmaos para a roca tratar do plantio, enquanto meu pai e o peao iam pastorear o gado.
Ao meio dia o almoco e depois um pequeno repouso enquanto o sol a pino, seguido por novas labutas pois la nao faltava trabalho para todos, ate a tardinha que fechava o dia com a recolhimento das vacas e bezerros aos currais devidamente separados, e assim terminava o dia com o cair da noite, sem esquecer do banho para tirar o suor de um dia de labor, em seguida o jantar substancioso para mais tarde gozar o devaneio olhando o ceu da noite estrelada, as vezes sob um luar que parecia estar ao alcance da mao, com alguns dedos de prosa e logo mais o sono reconfortante nas redes atadas na casa sede e nos barracoes, ate chegar a madrugada e depois os primeiros raios da manha que marcam o inicio de um novo dia de afazeres cotidianos.
A segunda fase de minha infancia foi na cidade de Boa Vista em busca da escolaridade formal e novas dinamicas de trabalho em familia, mas esta eh uma nova historia……
Rui.
Caro amigo Salviano! Ainda mantém as origens verdadeiras e simples do autêntico mineiro, que se emociona com as tradições e nunca esquece os mínimos detalhes de uma convivência pura e saudável com seus contemporâneos. Nós, originários do 12 RI e posteriormente, no mesmo ano de 67, fomos enviados para o 11 RI, na histórica cidade de São João, onde iniciaria uma trajetória histórica para todos mineirinhos da gema.
Salviano, meu grande companheiro, suas lembranças e histórias nos trazem à lembrança cenas inesquecíveis e sorriso nos lábios. Parabéns, amigo Capitão! Continue com esta trajetória e suas crônicas. Agradeço por ter marchado lado a lado e conquistado sua amizade. Forte abraço!
Que belo texto pai!
O trabalho árduo da vovó produziu bons frutos para além de uma geração. Fomos todos abençoados pela persistência e força dela e seguimos caminhando nos trilhos por ela assentados.
O mais interessante nas crônicas
do Capitão Salviano, é que todos que o lemos , principalmente quem é do interior desse país, se vê retratado em sua narrativa. Não fui do tempo da lousa, mas minha mãe foi. No entanto caminhava também doze quilômetros todos os dias em busca do saber. O mais gostoso é que ele inspira outros cronistas a escrever. Foi lindo ler os comentários. Destaque para o Sr Rui de Melo Cabral.
O Cap Salviano “falou” bonito. Há quem diga que para tanto, se ouça o coração. Ele consegue expressar, como ninguém, o que vai em nossas almas.
Grande Saliviano.
Retornei aos meus tempos no Araxá
Fraterno abraço.