Quero deixar clara desde já a minha opinião: o volume e a intensidade de todas as coisas absurdas que estão acontecendo ao nosso redor não são “normais”, não podem ser. E quando a realidade parece saturada de insanidades, surgem os bebês reborn.
Custei a assimilar do que se tratava, inclusive porque ainda não presenciei ao vivo esta aberração. Por mais inverossímil que possa parecer, a repercussão dada pela mídia (e pelo público) provoca a reflexão. Mas eles não surgiram no vácuo, fazem parte de um contexto maior.
Vivemos tempos em que as fronteiras entre a realidade e a fantasia parecem cada vez mais confusas. Neste cenário, o fenômeno dos bebês de silicone ganhou destaque: bonecos hiper-realistas tratados por adultos como filhos de verdade.
Não pretendo aqui julgar quem encontra conforto na fantasia, pois cada um busca as próprias formas de preencher seus vazios emocionais. Contudo, é impossível ignorar o quanto essa prática reflete uma sociedade que parece ter perdido a noção do limite entre o real, o simbólico e a insanidade.
O irreal traz conforto
Em um mundo marcado por incertezas e vínculos instáveis, a busca por conforto imediato ganha novas formas. Os bebês reborn oferecem uma espécie de presença emocional previsível e segura, um objeto que simula companhia sem exigir reciprocidade. Ou seja, um modo de manter a sensação de vínculo sem os desafios próprios das relações humanas, que envolvem imprevisibilidade e desgaste.
Segundo a psiquiatra, Dra. Michelle Paiva Mendonça Chiodelli, de Porto Alegre, “pessoas que estão levando a sério essa onda são aquelas com fragilidade de ego, inseguras, que temem ter um bebê de verdade e não ter as respostas que elas gostariam. Pessoas incapazes de tolerar a frustração […] com suas feridas narcísicas mais afloradas, acabam entrando na história de forma patológica”.
Mais do que uma simples excentricidade, esses brinquedos expõem o quanto estamos nos distanciando da experiência relacional verdadeira em nome de um controle emocional inócuo.
Sociedade do simulacro
Bebês reborn simbolizam uma era em que a aparência se sobrepõe à essência, ao mesmo tempo que a sociedade moderna valoriza o controle, a estética e a performance.
O sociólogo francês, Jean Baudrillard, em sua Teoria do simulacro, questiona a natureza da realidade na sociedade pós-moderna e alerta para os seus perigos quando substituída por representações idealizadas. Quando a cópia se torna mais significativa que o original, corremos o risco de nos desconectar do que é genuinamente humano — grandes obras literárias se desenrolam nesse cenário: Frankenstein, Pinóquio, Blade Runner, mas costumava ser ficção.
Vivemos uma época marcada por vínculos frágeis, famílias desestruturadas e laços sociais cada vez mais esgarçados. Bonecas de silicone não deixam de ser uma companhia simbólica em um mundo hiperconectado, mas profundamente solitário.
Apesar da abundância de redes sociais, o que se percebe é uma crescente sensação de desconexão afetiva. A solidão digital — o grande paradoxo moderno — se revela quando a atividade online substitui o diálogo e a presença física. Então, brinquedos silenciosos e previsíveis se tornam alternativas confortáveis a relações humanas caóticas e exigentes. Preferimos o afeto encenado ao amor vivo, o vínculo sem conflito ao crescimento verdadeiro. Eles não julgam, não frustram, não exigem reciprocidade.
São o simulacro perfeito de uma relação: presença sem risco.
Influência das mídias
Nesse cenário, a mídia e as redes sociais desempenham papel central. São elas que amplificam discursos, normalizam práticas e transformam casos isolados em fenômenos virais. A repetição constante de imagens e vídeos sobre os bebês reborn não apenas torna o assunto onipresente, mas também contribui para sua naturalização.
O algoritmo recompensa o inusitado e o emocionalmente carregado. Poucos temas conseguem ser tão visualmente impactantes e psicologicamente provocadores quanto adultos cuidando de bonecas como se fossem filhos.
Este fenômeno pode ser visto como parte de um quadro mais amplo de comportamentos irracionais em massa. Em seu artigo Collective madness: a societal phenomenon of irrational behavior, Boris Kriger explora como grupos podem adotar crenças e comportamentos ilógicos, influenciados por emoções, propaganda e desejo de pertencimento. A propagação rápida de ideias nas redes sociais amplifica esse efeito, tornando práticas antes consideradas excêntricas em tendências amplamente aceitas.
Não se fala de outra coisa, seja com fascínio, perplexidade ou repulsa. Isto revela outra faceta preocupante: enquanto problemas reais urgem atenção, estamos presos em um looping de distrações que pouco contribuem para o bem-estar individual ou coletivo. É o entretenimento da hiper-realidade em sua forma mais crua.
Por fim…
Cada um lida como pode com seus vazios. Faz parte da condição humana. Mas quando bonecos de silicone passam a ocupar o lugar das pessoas e a centralizar o debate, talvez estejamos diante de um espelho desconcertante do nosso tempo.
Se o mundo está realmente beirando a loucura, talvez manter-se lúcido seja o último ato de rebeldia possível. Use o seu tempo, converse com outras pessoas, leia bons livros. Seja produtivo.
A afirmação do poeta inglês, William Cowper (1731 – 1800) que a “falta de ocupação não é repouso; uma mente absolutamente vazia vive angustiada”— tipo, ‘mente vazia, oficina do diabo’ — é um bom lembrete de que se a sanidade parece estar em falta hoje em dia, então tente acumular a sua.
Lucidez virou artigo de luxo.
7 Comentários
Excelentes considerações sobre o assunto, Simone, que de modo muito lúcido, ainda traz psiquiatria, sociologia, filosofia e poesia! Para poucos a tua capacidade de análise de fenômenos da vida. A questão central é: louco sempre teve, e era fácil identificar um. Quem nunca viu uma mendiga na rua com uma boneca (também tem rico louco, e muito!)? Mas isso passava batido, não se alardeava tanto, tampouco virava assunto geral da sociedade. Perfeita a tua observação: enquanto se discute isso, quantos assuntos importantes são deixados de lado. Mas quando cai na boca do povo (ou da internet), vira fenômeno e precisa ser analisado. Parabéns!
Parabéns Si!! pelo texto, uma leitura potente e instigante. Levanta reflexões profundas sobre os rumos da nossa sociedade e como buscamos preencher os vazios afetivos com vínculos artificiais. A metáfora dos bebês de silicone é impactante e revela muito mais do que uma excentricidade moderna — é o retrato de uma era marcada pela solidão, pela hiperconexão sem afeto e pela fuga do real. Um convite necessário à lucidez e à reconexão com o que é genuinamente humano. Que venham mais textos como esse, que nos provocam e nos fazem pensar.
Fantástico seu texto, e ao mesmo tempo assustador.
Não estamos à caminho da insanidade, já chegamos .A tecnologia que era pra ser ferramenta de avanço humano tb tem seu lado sombrio e nos empobreceu,, nos emburreceu..me o que vemos é essa loucura coletiva. Que venham mais textos como esse pra nos manter lúcidos e saudáveis mentalmente. Obrigada, simone!
Baita texto, Simone.
Parabéns pela abordagem. 🥰❤️🙌
As pessoas estão cada dia com mais dificuldade em elaborar pensamentos e afetos, e estão adoecendo. Mas nesta leva também tem aqueles que fazem comédia do assunto tentando ganhar likes, e outros ainda explorando um novo mercado para ganhar dinheiro. Há de tudo mesmo…
Parabéns pelo texto Simone, como sempre excelente. Ótima abordagem. 👏🥰
Parabéns pelo texto Simone, como sempre excelente abordagem. 👏🥰