Somos bombardeados diariamente com notícias do tipo “a distribuição de renda piora no Brasil”, “distribuição de renda do trabalho tem piora recorde…” entre outras e ficamos sempre com a impressão que o dia do juízo final está se aproximando.
O problema com as manchetes de jornais é que elas contam uma pequena parte da história, mas não revelam o essencial: desigualdade é como colesterol, tem o colesterol bom para a saúde e o ruim. Da mesma forma, desigualdade tem seu componente positivo e necessário para a construção de uma sociedade vibrante, próspera e inclusiva, mas tem um componente que revela uma sociedade adoecida. O que não devemos fazer é confundir os dois tipos e querer reduzi-los simultaneamente. Precisamos aprender com os médicos, que (quase) sempre nos recomendam aumentar o colesterol bom e reduzir o ruim. Buscar reduzir os dois tipos pode ser prejudicial à saúde!
Primeiro, vamos falar sobre a desigualdade boa. Imagine a seguinte situação: Uma estrangeira vem ao Brasil, pega R$ 1 mil de 150.000 brasileiros, embolsa R$15 milhões e vai embora levando esta dinheirama toda. O Brasil ficou pior e empobreceu, certo? A distribuição de renda com certeza piorou, uma pessoa que já era rica, para início de conversa, ficou mais rica ainda enquanto que 150 mil pessoas mais pobres do que ela e ficaram mais pobres ainda. Cenário devastador, certo? Mas e se eu disser que esta estrangeira foi a Taylor Swift, que trouxe felicidade e diversão para seus fãs com seus shows, qual é a relevância de dizer que a distribuição de renda piorou? As pessoas, afinal, não ficaram melhores, ela e seus fãs?
Para o filósofo americano Robert Nozick, alocações de mercado provenientes da liberdade de escolha de decisões individuais podem piorar a distribuição de renda, mas aumentam o bem estar. Ainda como exemplo, considere dois amigos, talentosos, que estudaram juntos no ensino médio. Um deles resolveu estudar e fazer faculdade de medicina. Virou cirurgião famoso e rico, pois sua profissão é bem valorizada pelo mercado. O outro decidiu não entrar em nenhuma faculdade para fazer o que realmente gosta, que é surfar e participar de campeonatos de surf. Quando ficou mais velho, sua renda proveniente de aulas de surf e vendas de pranchas ficou substancialmente abaixo da do seu amigo cirurgião. Esta desigualdade de renda pouco tem a dizer sobre a qualidade de vida de ambos. O surfista pode ter tido uma vida mais prazerosa e cheia de aventuras do que seu amigo médico. Desta forma, muitas pessoas consideram que é errado fazer programas de redistribuição de renda, ou seja, ter um governo que tira recursos do médico e dá para seu amigo surfista. Assim sendo, Nozick considera que o resultado final de renda obtido pelas pessoas é pouco importante e o que realmente importa é o processo de criação e distribuição de renda. Se este processo for baseado em escolhas livres das pessoas, a distribuição final de renda pouco informa sobre o bem estar das pessoas envolvidas.
Outra desigualdade natural é a intrapessoal, pois somos todos desiguais ao longo da vida. Quando somos aprendizes, nossa renda é mais baixa; quando estamos no auge profissional, ela é mais alta. Como convivemos com pessoas de outras gerações, é natural que jovens de uma geração, com renda mais baixa, convivam com pessoas mais velhas de outras gerações, com rendas diferentes. Quando tiramos a fotografia da distribuição de renda, vamos notar certa desigualdade nos dados, mas qual seria o fundamento moral para que o governo buscasse reduzi-la? Difícil saber.
Adicione agora crescimento econômico nesta receita e as desigualdades podem aumentar, pois as pessoas começam a se tornar mais produtivas no trabalho e seus retornos aumentam em relação a quem não se aprimorou profissionalmente. De fato, se erradicação da pobreza for um objetivo, a promoção de políticas voltadas ao crescimento econômico torna-se essencial, mesmo que à custa de aumento da desigualdade.
E quanto ao colesterol ruim? Quando a desigualdade é ruim e não é desejável pois piora a vida em sociedade? A resposta ainda está no processo de criação e distribuição de renda ou, em outras palavras, nas regras políticas e econômicas da vida em sociedade. Desigualdade ruim ocorre e é magnificada quando estas regras, que economistas chamam de instituições, têm características extrativas, o que significa que estas regras visam capturar renda e riqueza criada por alguns grupos na sociedade e transferi-las para os grupos que se beneficiam destas instituições.
Economistas chamam isto de rent-seeking, que significa caçar a renda dos outros. Transferir ou capturar renda e riqueza criada por outros não cria mais riqueza; pelo contrário, destrói parte dela por causa do esforço de captura e também pelas técnicas defensivas que são usadas pelos grupos que não desejam perdê-la. A maior parte das pessoas não gostaria de gastar seus recursos em armas, cadeados, muros, alarme, arame farpado e advogados para proteger sua propriedade. Na presença de caçadores de renda alheia, estas técnicas defensivas passam a ser necessárias.
Várias características de instituições extrativas estão presentes no Brasil. Mercados altamente concentrados, com proteção legal, fazem com que grupos econômicos obtenham lucros de monopólio com a ajudinha do governo, cobrando preços mais elevados dos seus consumidores.
Outra característica importante é um péssimo ambiente de negócios, com excessos regulatórios e burocráticos, pois eles criam barreiras à entrada e minam a saudável competição em mercados.
Outra ainda é uma economia fechada ao resto do mundo, pois isto é uma forma de conceder privilégios exclusivos de acesso a mercados para produtores locais, novamente à custa dos consumidores. Mais formas de concessão de privilégios exclusivos são os famosos “bolsa empresário”, subsídios, incentivos fiscais e a famosa política criação de “campeões nacionais”, que equivale a dizer, hipocritamente, que transferir renda para os grupos mais ricos da sociedade é a melhor forma de beneficiar os mais pobres.
A lista de instituições extrativas envolve ainda um sistema estatal de educação de má qualidade, que não permite a ascensão e florescimento de talentos dos jovens e crianças que não conseguem escapar do sistema, preservando acesso a mercados de maior retorno para quem conseguiu. Adicionalmente, envolve também a concentração de poder político e econômico, que se reforçam mutuamente: grupos econômicos compram privilégios econômicos do sistema político, que é pago pelos serviços prestados com contribuições de campanha, pagamento por projetos de lei encaminhados e aprovados, ou mesmo com emprego futuro quando o político se afasta da vida pública.
Certamente todo mundo já se deu conta da presença deste tipo de instituições no país e seu resultado econômico, que também é bem conhecido: baixa produtividade, baixo crescimento econômico e péssima distribuição de renda, quando comparados com outros países.
Em suma, as regras do jogo da vida em sociedade, que são as instituições econômicas e políticas, se forem ruins (extrativas), tornam o jogo da sociedade feio, com baixo crescimento econômico e menor criação de renda e riqueza, tornando o resultado distributivo ruim e percebido claramente como injusto. Instituições deste tipo minam ainda a confiança dos cidadãos nas instituições de governo e degradam o funcionamento de mercados.
Desta forma, se quisermos prosperar com inclusão social, é fundamental melhorar as regras do jogo e permitir que somente a desigualdade positiva, a equivalente ao colesterol bom, que é relacionada com mais realizações pessoais e criação de riqueza, irrigue as veias da nossa sociedade, e que consigamos controlar melhor a desigualdade injusta, para que tenhamos vidas mais plenas de realizações em uma sociedade econômica, social e moralmente mais saudável.
2 Comentários
Excelente exposição.
Bela aula… Parabéns.