Há trinta anos, o Dr. Gary Chapman escreveu o famoso best-seller “As cinco linguagens do amor” (The five love languages), que explica as cinco maneiras de expressar e experimentar o amor com seu parceiro. É sobre receber presentes, gastar tempo de qualidade, falar palavras de apreço, praticar atos de serviço (como lavar a louça, ir ao supermercado, fazer o café da manhã) e toque físico. Alguns especialistas acreditam que existe uma sexta linguagem de amor: a comida.
Sempre gostei de cozinhar. Nunca fiz cursos especializados, não sou chef e nem sei mais se sou a melhor cozinheira da casa, mas sempre tive um paladar e olfato apurados que muito contribuíram para aperfeiçoar essa prática. Aos vinte e poucos anos já morava sozinha, trabalhava durante o dia e fazia faculdade à noite, o que inviabilizava em grande parte a minha vida social. Não que fizesse muita diferença, pois nada era mais convidativo do que beber um cálice de vinho, ouvir boa música e preparar alguma receita básica que aprendi com a minha mãe. Quando cozinhava, cumpria todo o ritual de arrumar a mesa e acender as velas, criava uma atmosfera dos melhores restaurantes que conhecia nem que fosse para jantar sozinha (meu então namorado, hoje meu marido, morava em São Paulo e eu em Santa Catarina). Ao final, por mais empanturrada que pudesse estar, faltava um elemento importante para que ficasse plenamente satisfeita: companhia.
Parte de mim ainda se sentia vazia sem ninguém para compartilhar a minha comida. Adoro comer bem, mas queria mesmo era abrir uma garrafa de Cabernet e partilhar a massa quatro formaggio com outras pessoas. Eu queria que alguém me dissesse o quão deliciosa estava a minha culinária, o cheiro da minha cozinha, o quão impressionante era a a minha apresentação. Eu ansiava por uma experiência compartilhada que iluminasse os cinco sentidos de todos. Sim, a comida incorpora todas as cinco linguagens de que fala o Dr. Gary Chapman e todos os cinco sentidos. É uma maneira muito poderosa de criar conexões e expressar amor.
Quando veio o lockdown e vimos a nossa vida social reduzida às pessoas da família e as paredes do apartamento, cada um precisou encontrar uma forma de desviar a monotonia e aconteceu de meu marido se infiltrar na cozinha. A princípio não achei ruim, afinal era uma nova experiência comermos todos em casa, todos os dias, algo que na rotina normal só acontecia aos finais de semana, e nem eu estava disposta a lidar com o fogão todos os dias — cozinhar requer inspiração. Acontece que ele nunca mais saiu de lá! Quando eu pensava que ia preparar algo diferente para o jantar de sábado à noite, já colhendo na minha horta os temperos apropriados para uma iguaria, lá vinha o Ronald com as compras feitas para por em prática a nova receita que havia assistido em algum canal do YouTube. Como sou alguém que fala a linguagem da comida, recusá-la pareceu por um momento que ele estava rejeitando o meu amor, quando na verdade ele estava tentando me demonstrar amor.
Já contei em outra ocasião que passei por uma cirurgia complexa nos tempos da pandemia e demandei certos cuidados. No início, minha mãe estava aqui e tomou conta de mim e da cozinha e da casa inteira (porque a mãe da gente resolve tudo), mas após a sua partida —houve ainda muito lockdown pela frente — foi a gente com a gente mesmo e ele queria me poupar.
Enquanto eu falava com Ronald na minha linguagem do amor, esqueci de ouvir como ele naturalmente dá e recebe amor: com atos de serviço, como fazer as compras e preparar o jantar para que eu não precisasse me ocupar com nada. Sempre estive tão preocupada em oferecer, cozinhar, fazer, servir, que não estava ouvindo o meu parceiro. Ele não apenas estava me cuidando, como estava desfrutando prazerosamente dessa nova e significativa atividade que passou a fazer parte de sua vida. Como eu poderia achar ruim?
Ainda cozinhamos juntos nos finais de semana; às vezes eu, às vezes ele, e se ninguém estiver com vontade de fazer nada, pedimos uma tele ou comemos fora. Até mesmo o nosso filho, eventualmente (muito eventualmente) prepara alguma receita. A exemplo de seu pai, adora ficar dando pitacos (ele nega com veemência essa afirmação) quando é a minha vez na cozinha:
— Mãe, esses bolinhos estão ficando tortos e diferentes um do outro.
— Verdade, meu filho. A comida tem personalidade própria. Deixe que ela tome a forma que quiser.
Apesar de cada um falar a sua linguagem, nos ouvimos e nos entendemos, damos boas risadas e apreciamos muito a opinião um do outro. No fim das contas, cozinhar é um tremendo ato de amor.
9 Comentários
Simone muito bom seu ponto de vista sobre o amor. Concordo com ele, amor está nas ações e não nas palavras. Excelente coluna. Parabéns!!!!!
Para quem é avessa a cozinha, foi com uma alegria enorme que li sua coluna, e compartilho do seu ponto de vista sobre o ato amoroso de cozinhar.
As poucas vezes que vou para a cozinha com alegria é para fazer um prato gostoso para os meus amigos, ou seja, compartilhar esse ato de amor com a comida e os amigos que me são especiais.. parabéns pela coluna maravilhosa.
Bom apetite.
Belíssima coluna, transborda delicadeza no amor. Tudo sempre com uma excelente referência da literatura.
Amiga vc expressa seus sentimentos tão bem com essa dádiva da escrita. Adoro sua coluna!!! Parabéns!!!
Sim cozinhar = parceria = amor🥰
Si, adorei o post e concordo que cozinhar é uma forma de demonstrar amor. Embora eu não seja jeitosa na cozinha, amo receber em casa e amo o ritual da preparação da casa, separar as louças, copos e adereços, pensando em agradar a visita.
Amei o texto Simone! Embora meus talentos para a culinária nunca tenham “desabrochado”, nem na pandemia… eu admiro demais quem faz essa entrega com amor e alegria! É um presente maravilhoso! Mais uma dica p/ a listinha! Bj
Interessante. Esse teu artigo, me fez pensar em profundidade sobre esse ato tão amoroso e simples de cozinhar, que reflete tanto do nosso íntimo . Eu nunca gostei de cozinhar só para mim ou comer sozinha. Hoje, eu estou pesquisando receitas novas para cozinhar só para mim, comidas saudáveis, comidas gostosas, comidas para congelar… Aprendendo a ser feliz sem ter de quem cuidar, aprender a cuidar de mim com todo o carinho que tomei conta de outros. Temos que ser felizes sózinhas, cuidando da gente, pois chega um tempo de não ter mais para quem cozinhar.
Adorei a reportagem Simone! Sempre admirei casais que tem parceria na cozinha. Cozinhar realmente é um ato de amor e entrega. Acho ótimo tuas dicas, que sempre nos fazem pensar na pureza das coisas cotidianas.
Não sou cozinheiro, mas adora aventuras na cozinha. Quando criança ficava rodeando minha mãe na cozinha, até hoje sinto o cheiro das suas comidas, que ela fez questão de manter até os 97 anos. Acho fantástica esta forma de me desestressar, embora pouco me estresse e amo também lavar a louça após a comida, com uma taça de vinho ou cerveja pra saborear com calma. Muito mexeu comigo seu texto.