Imagine o seguinte cenário: uma cozinha aconchegante, a luz do sol atravessando pela janela e o aroma inebriante de alho e cebola fritando no azeite de oliva. No canto, a taça de vinho tinto te olha e promete uma noite especial. Para completar, os acordes envolventes do trompete de Louis Armstrong ecoam no rádio vintage que ainda paira sobre a prateleira.
Bem-vindos ao meu santuário culinário, onde os sopros do jazz dançam com as especiarias e os sabores harmonizam como um quarteto bem ensaiado.
O ritmo da cozinha
Aprecio o ato de preparar a comida, as preliminares que o antecedem e usufruo de todos os prazeres do processo. Cozinhar é como improvisar um bom jazz. Visto o avental, pego a colher de pau (o inseparável saxofone) e subo ao palco—o piso da minha aconchegante cozinha.
A playlist? O timbre aveludado de Julie London, os riffs da guitarra de B.B. King e as baladas, com a voz rouca de Etta James, entoam como um solo saboroso que ressoa nas papilas gustativas. À medida que as primeiras notas tocam, eu pico cebolas com a precisão de uma pianista experiente. O ritmo staccato da faca batendo na tábua de cortar sincroniza perfeitamente com o compasso. Não se trata apenas de cozinhar; é a perfeita jam session culinária.
Música é fundamental
Por que insisto nessa trilha sonora? Porque música é o ingrediente secreto, o algo mais que define o ritmo, infunde os sabores e eleva meus pratos de comum ao extraordinário, de mero alimento à mais pura poesia. Porque a culinária e a música são como velhas amigas, complementam-se, inspiram-se e tornam toda a experiência mais prazerosa que um ganache de chocolate belga (olha, isso não é fácil).
Tempo e técnica
Músicas guiam o timing na minha cozinha. Assim como um baterista de jazz sabe quando bater os pratos, um chef cronometra a massa até a perfeição. E que melhor maneira de manter essa batida do que com um riff de Blues? Perfeito para em fogo brando. Quando preparo o aveludado molho Bechamel, as teclas do piano de Duke Ellington guiam meu pulso. Seus ritmos sincopados me lembram de adicionar a manteiga sem pressa, como a lenta progressão do Blues – no crescente das notas, até formar o mais tradicional e versátil molho branco.
Tempero Emocional
A música desperta emoções, e as emoções temperam a comida. Quando refogo cogumelos, a voz melancólica de Billie Holiday os impregna com um toque de nostalgia. Ao adicionar uma pitada de sal, imagino que seja o ritmo lento do contrabaixo. Enquanto isso, a páprica defumada preenche o ar com seu aroma inconfundível.
Músicos de jazz e blues são rebeldes—improvisam, quebram regras, criam magia. Pegam uma melodia simples e a distorcem, dobram, até que fique irreconhecível, mas invariavelmente única. Quando ouço chorar o violão de Robert Johnson, sinto-me inspirada a experimentar.
A pimenta dança – às vezes ousada, às vezes sutil – exatamente como a improvisação do jazz. Pontua o prato criando detalhes inesperados. Talvez um toque de canela no Chilli? Por que não? Afinal, o jazz me ensinou que as regras podem ser flexíveis como uma nota de Blues. Ousar é essencial.
Pitada de Brasil
Agora, vamos adicionar um pouco de sabor brasileiro à nossa sinfonia culinária. O samba encontra o swing e a cozinha balança. Sinta o gostinho! Misture o feijão preto com linguiça, carne de porco e temos Feijoada. Os sabores se fundem como uma roda de samba, cada ingrediente fazendo seu solo.
Ah, a Bossa Nova! Experimente uma Caipirinha ao ritmo sensual dos acordes cheios de saudade de João Gilberto e de repente, não mais que de repente, sua cozinha se transforma em algum lugar à beira-mar no Rio de Janeiro. Ou talvez uma cerveja? Permita-se aquela ilusão atrevida. O tom grave de Emílio Santiago irá revelar a verdade chinesa dos prazeres simples da vida.
Grand Finale
Conforme a noite avança, sirvo minha criação — uma sinfonia de sabores, um verdadeiro banquete musical. O cálice de vinho, agora meio vazio, balança ao ritmo da minha colher. O rádio entoa “What a Wonderful World”, e eu concordo com Louis: que maravilha! Porque na minha cozinha, sob a minha batuta, cada prato é uma obra-prima. A vida é curta demais para refeições sem graça — adicione um pouco de tempero e deixe a mágica acontecer.
Bon appétit, leitores amantes da culinária. Levante a taça, faça um brinde, e que sua cozinha esteja sempre repleta de melodias inspiradoras e aromas inesquecíveis. 🎵🍽️🍷
Já escrevi sobre o assunto em outro momento. Se gostou desse texto, confira: Da cozinha com amor.
6 Comentários
Texto fantástico…vislumbrei você na sua cozinha. Salut 🍷
Quanta poesia em um texto que tinha tudo pra ser mais um no meio de tantos. Mas o dueto culinária/música tornou um texto prazeroso e que nos remete à sua cozinha. Consegui, inclusive, ouvir as músicas e vislumbrar o eterno Jimmy. Parabens!!!😜
Texto incrível. Música e sabores são artes muito abstratas para descrever. Parabéns. Até me deu água na boca. Beijão.
Fico encantada com a sua energia e criatividade em desenvolver sobre um assunto, sempre autêntica, direta e envolvente com os seus sentimentos. Falar sobre culinária/musica não é tarefa fácil, mais vc nos remete a sua experiência e nos faz lembrar que é uma arte, e como prazeroso compartilhar com uma boa música. Parabéns!!!
As always, a brilliantly written article. I can smell the aromas, taste the flavors, and hear the notes being played. Si is such a wonderful writer and she evokes strong emotions with her style. Thank you for sharing a glimpse into your life with us!
Sou perito em fazer língua de vaca, cada dia sai de um jeito, mas nada se perde. Fico completamente envolvido quando começo um prato experimental. Adoro principalmente os doces, nunca compro geleia industrializada, faço experiências e a maioria exitosa. Acho realmente uma combinação fantástica, cozinhar ouvindo música e saboreando um bom vinho. Parabéns por partilhar sua experiência e práticas