Na roça, era difícil o trabalho do cabo eleitoral pra obter os dados das pessoas a fim de conseguir-lhes o título de eleitor.
A eleição muda a rotina.
O sol sai e entra, a semana vem e vai e a vida segue devagar na roça.
De tempos em tempos a coisa muda, como em ano das eleições. Não tá marcado na Folhinha de Mariana, mas dá pra saber que elas estão chegando.
Nome esquisito em letra de cal nas porteiras e nas pedras da beira das estradas. Nomes que a gente nunca viu, nem sabe soletrar. Gente da roça é Zé, Tião, Tõe, Mané… O que diferencia um do outro é o nome do pai, da mãe, do lugar ou o apelido: Zé do Cesaro, Zé da Égua, Tõe da Chica, Tião do Doca, Manezim da Cota, Bastião do Munho e por aí vai.
O cabo eleitoral é sinal de que a eleição está perto. Ele ensina como votar, arruma novos eleitores e até comprar votos ele compra.
Fazer um eleitor é tarefa complicada, exige conversa e paciência.
Deró, cabo eleitoral do candidato da oposição, tinha dado uma corrida na redondeza mês passado mostrando a cara e as qualidades do novo prefeito (vitória já garantida).
Muita gente sem título, ele ia resolver. Voltava no último domingo do mês, dia de terço no arraial.
O dia chegou, muita gente, de perto e de longe, veio. Banho tomado, roupa limpa e sem remendo, que era para tirar o retrato.
Deró chegou de jipe, feito gente importante. Trouxe montoeira de papel para distribuir, uma festa para a meninada. Tinha ficha para preencher e até retratista trouxe.
O “quartel” foi montado num canto da venda do Vendilino. Arredaram sacos de mantimento e de sal, rolos de arame, latas de querosene Jacaré e rolos de fumo para colocar uma mesinha e dois tamboretes.
Do lado de fora, um lençol branco na parede, a máquina, o retratista suado e gente, muita gente. Gente de roupa nova, cabelo emplastrado de brilhantina, rosto vermelho de ruge e boca rebocada de batom vermelho.
Gente doida para ver seu retratinho sair daquela geringonça que o Bilé retratista manejava com cuidado, espantando os curiosos que não arredavam de perto.
Do lado de dentro, Deró se desmanchava em cortesias para tirar a tensão das pessoas.
Pedir certidão de nascimento era perder tempo. Quase ninguém tinha e quem tinha não sabia por onde andava o tal papel.
A solução? Anotar tudo nas fichas, levar para a cidade e conferir no Cartório. Quem tinha nome ali virava eleitor na hora, quem não tinha passava a ter e a poder votar.
O primeiro da fila, um rapazinho magro e desconfiado, entrou, sentou e começou a suar.
– Bom dia! Cumprimentou Deró.
– Dia!
– Tudo bem com o senhor?
– Bão demais sô!
– Então o senhor quer votar, né?
– É, tô querendo, sô!
– Qual seu nome?
– Ganga!
– Uai, ganga que conheço é nome de algodão, não de gente!
– Que é, é. Foi quando entrei na escola. Por causa do cabelo, oh! (tirou o chapéu e mostrou o cabelo vermelho). Botaram apelido, eu briguei e aí pegou. É assim que todo mundo que me conhece e chama. Tem gente que me chama também de Di da Lina.
Dona Isolina (Lina por economia), sentada na lata do Jacaré ali atrás, foi quem esclareceu o caso. Na verdade, o Di era mesmo Deocleciano, nome difícil. Deocleciano José Ramiro, dos Ramiros lá da barra do Marimbondo com o Borrachudo.
– Que ano o senhor nasceu?
– Sei não, mas tô “berano” os vinte.
Deró ia abrir a boca, quando dona Lina entrou na conversa.
– O rapaz nasceu no ano da guerra, bem no fim. O Bem (Benevenuto do Tuta quando solteiro e agora Bem da Lina) foi sorteado pra pegar a farda e ir pra guerra. Um choreiro só na casa dele e na minha. Puro desperdício… Não é que quando a gente pensava que o coitado já tinha virado bate-pau, ele aparece de volta com a cara mais lambida – graças a Deus! E sabe por quê? Porque nem pra soldado prestava – louvado seja Deus! O doutor lá deles falou que ele sofre de batedeira, o coração fica “sulerado” atoa, atoa. Capaz até de morrer sem precisar levar tiro, só de susto. Também com tanto barbeiro como tem por aqui, quase todo mundo sofre da tal “chaga“!
– Tá bem, tá bem atalhou Deró. A convocação para a guerra foi em 43, vou botar esse ano aqui. E o mês?
– Ah, isso eu sei, falou o Ganga já aliviado. Foi no mês da Padroeira. Toda vez que vou tomar benção da dona Bina Parteira, ela diz que minha madrinha é a “Senhora da Badia”. Foi por causa do “bentinho” dela que botaram na barriga da mãe que eu saí logo e dona Bina pôde ir na romaria.
– Certo, certo, mês de outubro. E o dia?
– Pai diz que foi no dia que matou o “capadinho” vermelho, falou Ganga, já à vontade.
– E que dia foi esse que o porco foi pra panela?
Dona Lina nem piscou, abriu o registro e deixou escorrer:
– Eu tava na horinha de descansar desse aí, pesadona, as pernas inchadas, mas ainda fiz umas linguiças. O Bem é entojado, linguiça pra ele, só a que faço. De noite, comecei a passar mal. O Bem só saiu lá fora, deu um grito e logo, logo a Bina tava dando ordem na minha cozinha. Antes do sol nascer, os três mais velhos acordados pelo foguete que o pai soltou já rodeavam a cama para ver quem chorava daquele jeito.
– Dona Lina, a história tá boa, mas eu preciso saber é o dia, interveio o escriturário.
– Ah, sim. A linguiça levou dois dias para escorrer e uns três na fumaça pra pegar gosto. Somando dá cinco e mais dois da viagem, pois a comadre não foi comer linguiça minha lá na Água Suja! Uma semana, se não errei a conta.
Deró conferiu as contas e concordou: o capadinho virou linguiça no dia 4, o Ganga saiu da barriga da mãe na madrugada do dia 5 de outubro de 1943. Dona Bina partiu pra Água Suja no mesmo dia.
Mais um voto pro candidato, marcou Deró no caderninho.
– Seu Ganga, vem aqui no domingo pegar seu título!
Um voto a mais pra mudar o nome do coronel do município.
A situação do povo, bem, esta ia permanecer a mesma.
2 Comentários
Não perdi uma palavra… Voltei à terrinha no linguajar… E a “dificuldade” pra assinar o nome? Dedo polegar com calo de enxada pra carimbar o papel…😂😂😂😂😂😂
Voltar no tempo é bom demais,parabéns meu irmão , um abraço carinhoso.