Lembranças da infância, por Cláudio E. Duarte.
Tenho boa memória e guardo fatos de minha infância com clareza; principalmente aqueles que me assustaram ou me marcaram. Aqui temos um exemplo.
Na casa de minha tia-avó, na qual fomos criados, trabalhava uma moça, cujo nome era Maria Flor de Maio de Jesus. Naturalmente, nasceu em maio. Ela não gostava do nome dela e dizia que, se pudesse, trocaria o nome. Preferia o nome Bonifácia. Cada um tem o próprio gosto.
Lá pelos idos de 1965, mudou-se para Uberaba, onde residia seu irmão, e nunca mais tive notícias dela. Guardo-a apenas em minhas lembranças e minha saudade.
Flor ela era natural de Mendanha, distrito a cerca de 30 quilômetros de Diamantina. O pai dela, Sr. Raimundo, com seus 60 anos na época, fazia o trajeto Mendanha-Diamantina a pé para visitar a filha.
Uma vez, ele levou para mim um bodoque, mais eficiente que estilingue. Na minha infância, caçar passarinhos com estilingue fazia parte dos folguedos infantis. Mais tarde, é que a prática passou a ser condenada. Mas eu não me dei bem com o bodoque. O máximo que consegui ao tentar atirar uma pedra com o bodoque foi acertar o dedão da minha mão esquerda e nunca mais quis fazer uso daquilo.
A Flor de Maio me contava histórias que eu, menino curioso, gostava de ouvir. Ela era paciente, carinhosa e falava pausadamente. Guardei na memória uma das histórias que ela me contou e que hoje repasso para os amáveis leitores. História típica do interior, cuja veracidade nunca comprovei e nunca ouvi de ninguém semelhante versão. Por isto mesmo, e por se tratar de história curiosa, a guardei e a trago para vocês.
Antes, uma explicação, necessária para a turma mais jovem, acostumada ao mundo digital. As balanças antigas dos armazéns tinham dois pratos: num, eram colocados os pesos na medida que o cliente iria adquirir (1 Kg, 1,5 Kg, 2 Kg) , e, no outro prato, a mercadoria era colocada aos poucos, até que os pratos se equilibravam. O equilíbrio dos pratos demonstrava que a mercadoria havia atingido o peso desejado.
Contou-me a Flor de Maio que havia, no Mendanha, um comerciante muito sovina. Ele nunca permitia que os pratos da balança se equilibrassem. Com isso, um quilo que ele vendia deveria ter 800 ou 900 gramas. E não adiantava reclamar; ele era descarado e mal educado.
Em lugarejos do interior, havia um ou dois armazéns e não havia opções. Não havia a concepção de PROCON, de defesa do consumidor, de reclamar; as pessoas aceitavam o prejuízo com resignação e até diziam, conformadas, que ele era assim mesmo. Resignação e comodismo comuns do brasileiro.
Pois bem, um belo dia este comerciante morreu. Prepararam a sepultura, retiraram a terra da cova e, no momento do enterro, colocaram o caixão dentro dela. A família do defunto chorava; convidados e parentes assistiam à cena entre comovidos, distraídos e indiferentes.
Colocado o caixão na sepultura, os coveiros começaram a jogar a terra de volta. O normal é que sobrasse terra, pois a terra retirada da cova estava ao lado da sepultura e, dentro dela, ainda fora colocado o caixão, que ocupava grande espaço. A terra deveria ser suficiente para cobrir a cova, deixar a sepultura alinhada com o nível do chão e ainda sobrar. Porém, isto não aconteceu.
Faltou terra para completar a sepultura dele. Por mais que jogassem terra dentro da cova, a sepultura ainda ficava aberta.
Que fizeram as pessoas? Começaram a pegar terra das sepulturas ao lado. Mas não podiam apenas pegar a terra; as pessoas gritavam: “Fulano, vou pegar um pouco da sua terra para completar a sepultura de sicrano”. “Fulano, me empresta um pouco da sua terra para eu cobrir a sepultura de sicrano.”
Eu nunca soube o nome do comerciante sovina. Não sei detalhes além destes que agora trago nesta crônica.
Aprendi com essa história o castigo que era dado aos sovinas e desonestos que prejudicavam os outros em vida: faltar terra para fechar a sepultura deles.
Repasso a história para vocês exatamente como a ouvi. Até hoje, quando me contam o caso de alguém sovina e desonesto, que prejudica as pessoas, por conta da história que ouvi quando criança faço meu julgamento (contrariando os ensinamentos de Cristo no sentido de não julgar ninguém) e penso comigo mesmo “certamente faltará terra para cobrir o caixão e a sepultura dele”.
Lembranças da infância.
Cláudio Duarte é colunista e colaborador do PORTALIMULHER
4 Comentários
Bonifácia, rsrs
Como sempre, bem escrito!
Gostei!… Como q uma pessoa, q se chama Flor de Maio, gostaria de se chamar Bonifácia? Coisa de gente simples ou do interior. Mas, nós, q somos de lá, fomos abençoados com “causos” de toda as matizes. Recorda-los é como retroagir no tempo e retornar às origens. Valeu, amigão!…
Eu já havia ouvido, quando criança do interior de Minas, algo parecido com este “faltar terra para a sepultura”, mas desconhecia até o significado tão bem descrito em sua crônica. Meus cumprimentos….