O primeiro dia da prova do ENEM deste ano, dia 05/11, com as provas de ciências humanas, linguagens e redação, provocou forte reação de analistas por causa do engajamento de várias questões com teor ideológico compatível com ideias da esquerda radical. Analistas renomados na grande imprensa apontaram visões deturpadas sobre o agronegócio, sobre tecnologia e mais importante, sobre mercados. Carlos Alberto Sardenberg, do Globo, menciona o uso de terminologia da esquerda velha e obsoleta (“camponeses”) e denuncia truques de doutrinação e lavagem cerebral ao não incluir nenhuma questão sobre temas altamente relevantes hoje em dia, como democracia, liberdade de imprensa e liberdade de expressão. William Waak, da CNN, argumenta que os professores que realizaram a prova se mostraram independentes de qualquer rigor e honestidade intelectual e submeteram os jovens que realizaram o Enem a uma tortura ideológica. A prova seria então uma demonstração cabal do atraso mental do país. O cronista Eduardo Affonso, do Globo, afirma que a resolução da prova exige rezar pela cartilha do governo, e o aluno deve se contorcer para escrever o que os corretores querem ler.
O problema com este tipo de questões é que sinaliza aos alunos que o conhecimento relevante para passar na prova não é conhecimento objetivo, mas algo bem ao estilo soviético, onde a ascensão no sistema e até mesmo a sobrevivência física dependem da submissão e da capacidade de falar e fazer o que as lideranças políticas desejam. Considere adicionalmente uma avaliação objetiva como o PISA, que mede a capacidade de adolescentes de quinze anos de usar seus conhecimentos e habilidades em leitura, matemática e ciência para resolver problemas aplicados. O Brasil aparece em 66º lugar entre 79 países avaliados, bem abaixo da média da OCDE e figurando entre os piores da América Latina. Fica claro então que nosso sistema educacional não funciona nada bem, não ensina o que é importante e dá incentivos errados para tomada de decisões e resolução de problemas. Para o nosso sistema educacional é relativamente mais importante a submissão à autoridade do que a capacidade de resolução de problemas. Se realmente quisermos prosperar e construir uma sociedade livre e aberta, com democracia e inclusão social, uma reforma educacional abrangente se faz urgentemente necessária.
A despeito da visibilidade deste problema, a prova de redação teve como tema um problema invisível, importante e bastante complexo, o do trabalho de cuidado e doméstico realizado predominantemente por mulheres no Brasil. O ataque ao problema do trabalho feminino não remunerado faz parte da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, sob o tópico de igualdade de gênero. A ONU considera estas formas de trabalho como invisíveis, pois não representam trabalho remunerado e é difícil mensurar a criação de valor decorrente destas atividades. O trabalho de cuidado envolve proteger e ajudar as crianças a alcançar sua plenitude física e mental de forma a se tornarem adultos responsáveis, respeitosos e socialmente produtivos, e envolve também o de prover conforto e auxílio aos membros mais idosos da família. Trabalhos domésticos envolvem uma vasta gama de atividades como limpeza, arrumação, preparo de refeições, etc.
Existe uma interpretação de que pelo fato destas atividades serem invisíveis, elas são subvalorizadas. No entanto, no âmbito familiar, estas atividades são extremamente importantes, a despeito de não serem remuneradas como transações de mercado. Economistas tendem a ver famílias como organizações produtivas que têm certos objetivos, como produzir bebês e bem estar para seus membros. Alguns ganhos de organizar famílias são compartilhar bens públicos (quando os parceiros apreciam suas crianças e vivem numa mesma casa), explorar ganhos da divisão do trabalho, como vantagens comparativas e retornos crescentes à escala (quando um parceiro trabalha em casa e o outro no mercado), coordenar atividades de investimento (quando um parceiro trabalha e o outro adquire educação), compartilhar risco (quando um parceiro trabalha e o outro está doente ou desempregado) e coordenar os cuidados às crianças (um parceiro ajuda nas lições de casa e o outro leva e busca da escola). Várias destas atividades são essenciais na vida doméstica e criam valor, mesmo que não sejam remuneradas como atividades de mercado. Como, de maneira geral, boa parte das atividades domésticas é feita por mulheres, existe a percepção de que elas não são devidamente valorizadas. Assim sendo, torna-se necessário mensurar este tipo de trabalho para tornar visível a contribuição predominantemente feminina, buscando corrigir desigualdades de gênero com políticas públicas. Por exemplo, em vários países, reconhece-se que mulheres frequentemente têm jornadas duplas de trabalho (no mercado e em casa) e em função disto se aposentam mais cedo do que homens, embora tenham maior expectativa de vida. Adicionalmente, reconhece-se também que a maternidade impõe um ônus proporcionalmente maior às mulheres, de forma que a política pública de redução de desigualdade passa por redução adicional de idade de aposentadoria para cada filho. Em sociedades com transição demográfica, que estão envelhecendo com redução do número de jovens ativos no mercado de trabalho como proporção do número de aposentados, esta política também incentiva as famílias a aumentar o número de filhos e reduz os problemas associados à transição.
O problema é como mensurar adequadamente transações fora do mercado. Os Sistemas de Contas Nacionais (SCN) dos países foram desenhados para capturar o valor adicionado de transações de mercado que chamamos de PIB, mas mesmo assim não o captura muito bem. Interessante notar que, a despeito dos defeitos do PIB, ele se correlaciona bem com várias medidas de bem estar social, como redução de mortalidade infantil, maior educação formal média de mulheres, redução de pobreza, democracia, etc.
Em relação aos SCN, trabalhos de cuidado e doméstico apresentam dificuldades adicionais de mensuração, pois não dispõem de preços para os bens e serviços produzidos. Outra dificuldade reside na definição do que é trabalho doméstico. Por exemplo, fazer um jantar é trabalho ou é lazer? Se for trabalho, como atribuir uma remuneração monetária, pelas horas de trabalho utilizadas ou pelo custo de aquisição da refeição equivalente no mercado? Estas perguntas não têm respostas fáceis nem óbvias, e representam um grande desafio para adicionar informação de qualidade. Adicionalmente, estimativas preliminares indicam que o trabalho não remunerado no âmbito familiar corresponde de 11 a 15% do PIB dos países e existe atualmente um grande esforço para conseguir produzir estatísticas confiáveis deste valor usando sistemas satélite de contas nacionais (que são compatíveis com os SCN).
O invisível trabalho de cuidado e doméstico realizado predominantemente por mulheres no Brasil é certamente um tema importante no contexto de redução de desigualdade de gênero e merece ser mais bem discutido. Entretanto, boa parte da discussão sobre o assunto envolve o estabelecimento de formas apropriadas de mensuração para possibilitar a produção de políticas públicas adequadas. Esta discussão é técnica, difícil e, portanto, demorada. Talvez valha a pena devotar mais tempo e recursos para prover os verdadeiros equalizadores de gênero e libertadores das mulheres: maior acesso à educação de qualidade e maior participação em mercados de trabalho, que levam a maior bem estar decorrente de maior renda e decisões mais bem informadas.