“Cada Zé é um Ulisses. Cada pequena vida, uma odisseia. Cada pequena vida, uma Odisseia” (Eliane Brum - “A Vida que Ninguém Vê”)
Chegou o dia da eleição.
Meu pai era mesário.Trabalho importante, a mãe explicou. Só para quem tinha leitura, era professor ou pessoa influente. O pai devia de ser influente, porque sua leitura era pouca e professor, desses de escola, ele não era.
Chegamos cedo na Serra.
– Vou ficar o dia inteiro ensinando votar. O almoço é no Raimundo, não precisa me esperar, vai e come, recomendou meu pai
Sem o que fazer, eu andava por ali: subia em árvore; matava passarinho; rodava pião e voltava pra ver se meu pai continuava lá. E ele continuava.
Coisa mais besta ser gente influente, pensei.
Uma buzina conhecida soou na descida da serra: era o caminhão do Mundinho, um fenemê (1) dos mais bonitos, também o único que a gente conhecia.
O motorista encostou na porta da venda do Divino e foi falando:
– Quem vota na cidade sobe que já tô voltando.
Não entendi. Tinha eleição ali, então pra que ir votar na cidade? (guardei para perguntar pra mãe, ela devia saber).
A ideia veio que nem corisco: se o Mundim levava, tinha que trazer pra trás, ninguém ia ficar morando na cidade. Eu, Zé do Mário (10 anos), chamei o Zé da Donara (10 anos) e o Zé do Domingos (11 anos) e falei o que tava pensando. O Zedonara topou, mas Zedomingos mijou pra trás.
– E se os meninos da cidade invocá com a gente?
– Nóis é treis, ninguém vai encarar!, falei.
– Tô de estilingue e bolso cheio de pedra!, reforçou o Donara.
Resistência (medo) vencida, trepamos na carroceria.
De pé no meio, segurando na corrente, a tentação de soltar as mãos e equilibrar era grande, as curvas, bacadas (2) e galhos de árvore não davam medo. O vento assobiava nas orelhas e o nariz gelava, uma festa.
O caminhão parou na praça e os eleitores levados pro “quartel” (3) do PSD (4) pra almoçar antes de votar. Fomos atrás.
A mulher que servia a boia xingou a gente e mandou esperar.
– Onde já se viu, meninada sem educação, entrar na frente de gente grande!.
Esperamos. Em vez de diminuir, a fila só aumentava e junto nossa fome.
A necessidade faz o sapo pular.
– Vamos encostar em algum menino que está com o pai ou a mãe.
Deu certo para os dois primeiros. Eu fiquei junto de um preto com seu filho e quando chegou a minha vez a mulher perguntou:
– Esse branquelo aí é seu?
-Não, senhora, meu é só o jabuticaba aqui!
Tiririca (5), voltei pro fim da fila. Daí a pouco escutei:
– Zedomaro, Zedomaro, vem comer com nois!
Três em dois pratos. Também era comida demais pra menino. Uma pratada de tutu de feijão, arroz, macarrão de bote (6), bola de carne e mandioca.
A gente nem chegou na metade e o fenemê buzinou.
– O Mundim tá indo embora!, gritamos os três.
Largamos os pratos, enfiando uma bola de carne na boca e pegando outras na mão.
Corremos à toa; o Mundim não ia pra Serra, ia era levar eleitores do Espia que já tinham votado.
E agora? Voltar e pedir mais comida não ia poder. Ficar com fome também não dava.
-Vamos no quartel da UDN (4) agora.
– A gente fala que tava tomando conta dos cavalos.
Deu certo. Pedimos pra cozinheira pôr mais um pouco. Ela achou a gente educados e caprichou no frango.
Barriga cheia, voltamos pra a praça. Alguém falou que ia demorar muito. E como demorou! O sol virou e a gente na praça com medo de sair. A sede apertou, os carrinhos de picolé pra cá e pra lá e nós sem um tostão.
-Vamos pedir água no “quartel” da UDN, falei.
– Vocês entram e eu vigio a porta, se o caminhão aparecer eu grito, ofereceu o Zedomingos.
Não foi preciso gritar; o danado não aparecia e nossa aflição aumentava.
A agonia tava quase virando choro, quando escutamos a buzina. Todo mundo da Serra ficou de pé e nós na frente. Mal o caminhão parou, nós trepamos e sem graça sentamos num canto da carroceria…
Agonia a cada parada – Estreito, Lagoa, Mata dos Praxedes (7). O medo da votação já ter acabado e o pai ter ido embora não saía da cabeça…
Quando o caminhão entrou no arruado do arraial, a primeira coisa que olhei foi pé de cagaita (8) pra ver se o Relógio (9) ainda estava lá.
Ele estava e despreocupado com a eleição como todo cavalo deve ficar. O sorriso voltou.
Ulisses voltou a Ítaca disfarçado: nós desembarcamos na Serra de cabeça erguida e propalando nossos feitos.
Frustrado me senti depois, por não poder contar em casa a aventura, mas pensando bem valeu. Superei limitações, medos e ampliei meu mundo.
Minha Odisseia aos dez anos…
Dicionário:
(1) – Fenemê: caminhão produzido pela Fábrica Nacional de Motores, que trazia em sua frente as três letras FNM e passou a ser conhecido por fenemê.
(2) – Bacada: solavanco no carro provocado por buracos na pista.
(3) – Quartel: local de alimentação dos eleitores da zona rural, normalmente um galpão ou barraca.
(4) – PSD: PSD: Os dois maiores partidos políticos do Brasil na época eram o PSD (Partido Social Democrata) e a UDN (União Democrática Nacional), que tinham muita rivalidade entre si. Os partidos tinham as bases de apoio aos eleitores nas cidades, chamadas “quartel”.
(5) – Tiririca: com muita raiva, enfezado.
(6) – Macarrão de bote: macarrão grosso e comprido consumido na década de 50.
(7) – Localidades por onde o caminhão passava até chegar a Serra, onde o Pai do autor atuava como mesário.
(8) – Cagaita: fruta do cerrado mineiro;
(9) – Relógio: o cavalo ensinado e de estimação da família do autor e que o pai usou para ir da zona rural até a localidade de Serra com o autor na garupa. “Relógio” foi objeto de outra crônica.
4 Comentários
Naquele tempo dos coronéis da política usava- se o recurso das marmitas. Envelope com o nome e o número do candidato a serem votos. Escravidão política. Corrupção é coisa antiga no Brasil. .
Excelente texto. Como sempre muito bom de se ler e lembrar os bons momentos da vida.
Belo linguajar caipira!!! Entendi todas as palavras… Viajei sentindo a pressão de algo dar errado e ter acertos de contas em casa. Parabéns SALVIANO combatente veterano.
Parabéns pelo texto Salviano. Os tempos que se foram, tornam para nos revelar os usos e costumes de antanho. Excelente! Parabéns!