A lenda de Carila é narrada como se tivesse acontecido em Delfos – cidade grega que tinha o famoso oráculo, que ficava dentro do templo dedicado ao deus Apolo. A cidade era reverenciada por todo o mundo grego como o centro do universo.
Em tempos esquecidos, dos quais restou somente a lenda, Delfos foi tomada por seca e fome. Os campos nada produziam, e a cidade encheu-se de mendigos e desocupados. As pessoas aglomeravam-se em frente ao palácio real pedindo comida. Esporadicamente, o rei dava cevada, alimentos e legumes de seu estoque. Como sempre, reis e governantes não sentem a fome que os governados sentem.
Um belo dia, havia grande aglomeração em frente ao palácio real. O rei começou a distribuir a comida que havia em seus cestos, mas a comida não foi suficiente para atender a todas as pessoas; algumas receberam sua porção e outras saíram com a barriga vazia à espera da porção de outro dia. Veja a semelhança: governantes distribuem migalhas e o povo acha que ele está fazendo grande favor.
Dentre os pedintes, estava a menina Carila, órfã, que não se conformou em não receber sua porção. Ela insistiu, e o rei, irritado, tirou uma de suas sandálias e bateu na menina. Não satisfeito, enquanto a menina se afastava, o rei atirou a sandália com força na cabeça dela.
Faminta e humilhada, Carila retirou-se para as montanhas e enforcou-se numa árvore com seu cinto. Alguém encontrou o corpo da menina morta e o enterrou.
Passou-se a estação da seca, mas a fome do povo permaneceu. Pior, a fome do povo aumentou. Vieram enfermidades e pestes. Sem saber o que fazer, o rei procurou o oráculo da cidade no templo do deus Apolo. A pítia – sacerdotisa de Apolo que anunciava os oráculos no templo – respondeu que nada aconteceria enquanto o rei não serenasse Carila.
Carila? Quem era Carila? Naturalmente, o rei não se lembrava da menina e nem da agressão que lhe havia feito. Contudo, alguém se lembrou do ocorrido e lembrou ao rei sua conduta agressiva e violenta contra a menina. Consciente da injustiça cometida, o rei providenciou o ritual de purificação de Carila.
O rei reuniu a população e distribuiu cevada e legumes para a população. Ao final, a mestra das tíades – sacerdotisa do deus Baco – apresentou ao rei uma boneca de pano, simulando Carila. O rei repetiu o que fizera com Carila: golpeou a boneca e depois atirou a sandália nela.
O povo levou a boneca em procissão para as montanhas, onde a mestra das tíades simulou enforcar a boneca com um cinto, pendurando-a no galho de uma árvore. Horas depois, retirou a boneca e a enterrou, do mesmo jeito como acontecera com Carila.
A cada oito anos, o ritual era repetido para lembrar aos cidadãos de Delfos que Carila tinha sido desrespeitada e que casos de desrespeito merecem reparação.
A lenda tem seus ensinamentos.
O povo passa fome, mas os reis se refestelam.
Com fome, o povo recorre aos reis, dele recebe migalhas e ainda acha que o rei fez grande favor e foi benevolente.
Os deuses não toleravam o desrespeito dos poderosos para com os humildes e carentes. Advertia os arrogantes com calamidades. Os arrogantes e prepotentes de hoje não conhecem a lenda de Carila.
Ora, como não toleravam arrogância, muito menos tolerariam corrupção e exploração do povo pelo furto e mau emprego dos recursos oriundos dos impostos.
Os comportamentos condenáveis exigem reparação. Ainda que praticados contra uma pequena menina órfã e faminta.
A reparação é necessária para que a falta não se volte a repetir. Só que, quando o fato e a reparação caem no esquecimento, os governantes e orgulhosos tendem a repeti-lo.