“Mostremos valor constância, nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas, de modelo a toda Terra.”
(Hino Rio-Grandense)
A água potável voltou nesta madrugada. Hoje é 20/05/2024 e meu bairro ficou desabastecido por mais de quinze dias. Deu vontade de chorar. Pude ligar o chuveiro e tomar banho, mas milhares de pessoas ainda não podem. Nem chuveiro têm mais. Nunca antes pequenos atos do cotidiano pareceram tão importantes. As enchentes no estado afetaram a todos os cidadãos do Rio Grande do Sul de alguma maneira, mesmo os que não tiveram a residência alagada, como eu. Nenhum gaúcho sairá o mesmo dessa tragédia.
O que houve
O bloqueio atmosférico causado por um sistema de alta pressão no Centro-Sul do Brasil impediu o deslocamento de sistemas meteorológicos típicos (ciclone extratropical, frente fria, cavado) que causam precipitações. As temperaturas onde o anticiclone atuou ficaram de cinco a dez graus Celsius acima do que é registrado historicamente pelo Instituto Nacional de Meteorologia (INMET). Por conta disso, as áreas de instabilidade ficaram confinadas no Rio Grande do Sul.
As inundações iniciaram no final de abril e atingiram quase a totalidade do estado, causando, segundo dados da Defesa Civil até o dia de hoje, pelo menos 157 mortes, mais de 800 feridos, 88 desaparecidos e aproximadamente 581.633 pessoas desalojadas. Propriedades foram destruídas, bairros ficaram submersos, cidades inteiras foram devastadas por conta dos extensos alagamentos. Somente quem viu saberá a dimensão.
Reação da sociedade
A ação da sociedade civil foi surpreendente, imediata e aconteceu de forma orgânica, sem um comando central. Abrigos foram organizados de modo espontâneo e milhares de voluntários se mobilizaram, atuando em todas as frentes. De um dia para o outro, meu WhatsApp encheu com pedidos de doações. A maioria dos grupos e contatos tomaram a dianteira e agilizaram para arrecadar o que era mais urgente.
Alimentos em geral, papinhas para bebês, doces para a reposição calórica; roupas e calçados separados por numeração – inclusive provadores foram improvisados para que as pessoas experimentassem o que era doado; ração e agasalhos para pets, veterinários que pudessem ajudar; artigos de limpeza e higiene; médicos na área da saúde, imprescindíveis. Além das campanhas do poder público, foi possível apoiar e incentivar ações pontuais promovidas por pessoas conhecidas. Poderia citar várias histórias de colegas que desde o início se mobilizaram para ajudar e criaram assim uma corrente de solidariedade.
Sofia Azevedo, amiga leitora, do Clube de Leitura D’Elas, junto com seu esposo Eduardo, começaram a fazer cachorro-quente para distribuir às vítimas da enchente. Dia após dia, vizinhos e amigos se uniram a eles e hoje são mais de 30 voluntários na equipe. Já bateram a marca de 50K lanches distribuídos em diferentes abrigos e não pretendem parar por aí. Emocionante ver seus filhos envolvidos no processo de confeccionar os sanduíches, aprendendo desde cedo sobre a prática da empatia. A palavra convence, mas o exemplo arrasta.
Proprietários de barcos e jet-skis juntaram-se à linha de frente no resgate de vítimas da enchente. Empenharam-se em salvar vidas e oferecer apoio às comunidades afetadas. Enfim, uma complexidade de emergências e demandas foi sendo atendida com a soma dos esforços de todos os envolvidos.
Trabalho voluntário
Trabalho como voluntária numa instituição que ficou inacessível logo nos primeiros dias. Em seguida procurei o alojamento mais próximo de casa e ofereci ajuda. Para minha surpresa, havia tanta gente disponível que acabei sendo dispensada naquele momento. Solicitaram que voltasse no período da noite por haver menos pessoas atuando. Quando retornei, perto das oito horas, tive acesso a área onde estavam os desabrigados. Após vários anos de voluntariado, achei que já tinha visto de tudo um pouco – até porque estive em asilos (experiência bem desafiadora), mas não. Aquele cenário do alojamento provou o contrário.
Nos anos que antecederam a pandemia, fiz parte de um coral voluntário que visitava asilos na periferia da cidade. Não foi tarefa fácil. Pude constatar o óbvio. Nós, enquanto sociedade, ainda não estamos preparados para lidar com a velhice. Envelhecimento deveria ser a palavra de ordem na elaboração de políticas públicas de longo prazo para garantir melhor qualidade de vida, porém não é isso que acontece. Temos um longo caminho pela frente que envolve antes de tudo mudança de valores e de mentalidade, porque todos vamos envelhecer um dia. Deixarei este assunto para outra oportunidade.
Ver os desabrigados nos alojamentos foi impactante. Pessoas desprovidas de tudo. Seus pertences, suas casas, suas histórias. Sobreviveram àquela situação graças a caridade alheia. Quantos não perderam muito mais do que casas, perderam alguém. Lembro de observar uma senhora deitada no colchão ali improvisado, fitando o teto como se buscasse uma explicação. Não sei por onde andavam seus pensamentos, mas sei que afetaram os meus. Por um breve instante me coloquei em seu lugar e fui tomada por profunda dor. Rezei para que não perdesse a esperança, talvez tudo que lhe restasse naquele momento. Também saio modificada dessa calamidade.
O futuro
Em meio aos desafios devastadores trazidos pela enchente que assolou o estado e a cidade de Porto Alegre, a participação estrondosa dos voluntários, não apenas do RS, mas do Brasil e do mundo, merece o mais efusivo aplauso. Como cidadã portalegrense, deixo registrado aqui meu sincero agradecimento. A solidariedade e o amor ao próximo constituem a força propulsora para começar a juntar os destroços e reconstruir a nossa cidade.
A citação de Ernest Hemingway, escritor americano que trabalhou como correspondente de guerra durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), ilustra com precisão o que estamos vivendo no Rio Grande:
“– Quem estará nas trincheiras ao teu lado?
– E isso importa?
– Mais do que a própria guerra.”
É sobre isso.
Simone M. Fuchs Hillbrecht
Colaboradora e editora do Portal iMulher e residente de Porto Alegre.
Sugiro as seguintes contas para quem quiser contribuir com o Rio Grande do Sul:
Sofia Azevedo: PIX 51991244052 (Sofia Azevedo)
Grupo Ação Solidária Enchente: Pix 528.707.150-72 (André Wiltgen)
Mutirão de Limpeza em Porto Alegre: PIX 51989210505 (Felipe Saft Eugenio)
4 Comentários
Simone nenhum de nós sairá igual dessa tragédia. Mesmo quem não está no RS percebeu o quanto a vida é frágil e o quanto precisamos uns dos outros. Nesses momentos, acaba a soberba, entra a solidariedade, o amor, mesmo sem saber a quem. Por fim , essa tragédia, pra mim, que moro em Santa Catarina, serviu para restaurar minha fé no ser humano.
Relato de cortar o coração.!
A começar pela dolorosa foto que ilustra seu texto. Em meio a tanta dor sua sensibilidade enaltece a compaixão e solidariedade que emergiu das águas.
Simone, conseguiste sintetizar um pouco a tragédia e a confusão de sentimentos que estamos vivendo. A tua sensibilidade humana permite imaginar o que passa na cabeça de alguém que está num abrigo, que perdeu um dos bens materiais mais importantes da vida, um canto para morar e chamar de seu. Nem se fale das vidas, o resto daremos um jeito, mas essas se foram e não voltam. Estamos demonstrando nosso valor, mas ainda somos tão imaturos como sociedade por um lado, especialmente quando não conseguimos representantes políticos que reflitam quem somos: sociais, solidários, apesar do medo, empáticos e virtuosos.
Podemos imaginar como as pessoas afetadas se sentem, mas só elas sabem como estão vivenciando tamanho processo. Sabemos que nada acontece “por acaso”, e ainda que a mente racional não compreenda, existe um propósito maior que só essa Consciência Divina sabe. Fico a disposição na minha atuação no que puder servir. Minha alma se solidariza com a alma de todos vocês 🌿💜🙏🏻
Que a união e a força do coletivo tragam uma carícia para o coração.