Por Giulia Schabbach
Em homenagem a Jane Austen, na semana de seu aniversário de falecimento (18 de julho de 1817).
Contexto
Orgulho e preconceito foi o segundo romance publicado pela escritora inglesa Jane Austen, em 1813, dois anos após a publicação de Razão e sensibilidade, e tornou-se bastante popular já naquela época. O sucesso do romance — e, de fato, de toda a obra de Austen — tem apenas crescido desde então, tornando a autora uma queridinha do público em geral, bem como de críticos e estudiosos de literatura. Seu sucesso estrondoso é evidente pela multiplicidade de adaptações que suas obras receberam para o cinema e para a televisão, além de recontagens modernas de suas histórias, como o famoso filme dos anos 1990 As patricinhas de Beverly Hills, inspirado em Emma, e a web-série The Lizzie Bennet Diaries (disponível gratuitamente no YouTube), que traz para o mundo moderno a história que é o foco deste texto: Orgulho e preconceito.
Nesse seu segundo romance, Austen cria um retrato intrincado da vida da nobreza rural da Inglaterra no Período Regencial (1795-1837). A partir dos desafios e preocupações da família Bennet, em torno de quem o enredo se constrói, o leitor atual tem a possibilidade de vislumbrar o funcionamento daquela sociedade, com suas regras de convivência e as sutilezas de seu cotidiano. À medida em que a história se desenrola, Austen vai trazendo à tona as mais diversas questões: a importância do casamento para as mulheres da época, o perigo de ser indulgente demais com os filhos (quem já leu sabe de qual filha estou falando 😉), as preocupações advindas das leis de herança da época, o intrincado sistema de esferas sociais que regia a sociedade inglesa, entre outros.
Os detalhes fazem a diferença
Em um plano mais superficial, Orgulho e preconceito conta a história de amor entre Elizabeth Bennet, a segunda de cinco filhas, e Sr. Darcy, desde o momento em que se conhecem e sentem um desprezo mútuo um pelo outro até, enfim, eles se apaixonarem e se casarem (uma curiosidade é que esse foi o romance que popularizou, na literatura, a temática do romance “de inimigos a amantes”, ou “enemies to lovers”, em inglês). No entanto, ainda que o romance dos dois seja um ponto central da trama, a obra de Austen é muito mais rica e complexa do que podemos pensar em uma primeira leitura superficial. Só é preciso ler com extrema atenção aos detalhes aparentemente insignificantes, porque em se tratando de Austen, cada detalhe banal tem muito a dizer.
Tomemos, na esfera macro do texto, a personagem da Sra. Bennet, mãe de Elizabeth, como exemplo. Em um primeiro momento, é possível interpretá-la como uma personagem fútil, cômica, um tanto irritante e até mesmo ridícula com suas reclamações, suas gafes sociais e sua obsessão em conseguir que as filhas se casem, de preferência com homens ricos. O que a leitura aprofundada e contextualizada vai acrescentar é que a Sra. Bennet, à sua própria maneira desajeitada, está tentando cumprir da melhor maneira possível sua função como mãe. De fato, ela está tentando contornar a situação criada por seu marido, um personagem tão elogiado por sua inteligência e seu humor ácido ao longo da trama, mas que, apesar de ser amável, falhou em sua função principal: prover para sua família. O Sr. Bennet não garantiu dotes e heranças adequadas para as filhas, pois pensava que teria um filho homem para herdar sua propriedade e cuidar da mãe e das irmãs. Como, entretanto, o filho homem nunca veio, a propriedade está destinada a passar para um primo distante, Sr. Collins, e a Sra. Bennet e suas filhas passariam a depender inteiramente da boa-vontade e gentileza de outros parentes do sexo masculino para não ficarem desamparadas caso o patriarca viesse a falecer. Assim, é preciso entender o contexto da obra e ler além do óbvio para perceber que nem sempre os personagens de Austen são apenas o que aparentam ser na superfície. O Sr. Bennet não é um grande exemplo de homem e a Sra. Bennet não é uma mera mulher fútil.
Agora, vamos olhar para a esfera micro, voltando-nos para a sutileza da ironia de Austen, uma de suas características estilísticas mais celebradas pela crítica — e, em minha opinião, um dos aspectos mais prazerosos na leitura de uma obra da escritora. Vou usar um exemplo talvez já bem batido, mas, ainda assim, muito eficaz: a famosa frase inicial de Orgulho e preconceito. O romance começa com a seguinte afirmação: “É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro em posse de uma boa fortuna deve estar à procura de uma esposa.”[1] Vamos voltar nossa atenção para a palavra “universalmente”, pois é nela que reside a grande ironia da frase. O “universo” que essa palavra engloba é o universo dos habitantes daquela vizinhança, e, se quisermos restringi-lo ainda mais, é o universo das mães de moças casadouras. Com essa escolha precisa (e cômica) de palavras, Austen já começa a narrativa com um comentário implícito sobre aquela sociedade, seu funcionamento e a maneira como as pessoas que a ela pertencem pensam. Aqui, Austen usa não apenas sua exemplar ironia, mas o faz em conjunto com o famoso discurso indireto livre, ou seja, a voz do narrador e os pensamentos dos personagens se misturam já nessa primeira frase. Não é o narrador que acha que todos sabem que jovens rapazes ricos estão procurando esposas, mas os integrantes da sociedade local.
Por fim…
Espero que, a partir desse breve comentário, seja possível perceber um pouco da genialidade de Austen e da riqueza de aspectos temáticos e estéticos interessantíssimos que podemos encontrar em sua obra. Orgulho e preconceito é uma ótima introdução à produção literária da autora, pois traz um enredo cativante, com segredos, reviravoltas e uma série de diálogos engraçados e ácidos, em conjunto com toda a beleza da escrita de Austen, que foi mestre em manipular a língua para elaborar frases belas, recheadas de ironia, humor e sagacidade — com direito até mesmo a alguns comentários bastante ácidos sobre os próprios personagens. Austen é uma escritora fora do comum. Suas obras se tornaram clássicas, porque sobreviveram ao tempo e transbordam valor estético-literário, assim como outras. Contudo, diferentemente de muitos outros escritores e obras canônicas, ela própria tornou-se icônica no imaginário popular e suas obras continuam encantando leitores de todas as idades, arrecadando fãs mundo afora.
[1] Tradução de Carol Chiovatto, publicada pela editora Antofágica em 2021.
Giulia Schabbach é graduada em Letras (tradução) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, atualmente, está concluindo o mestrado acadêmico em literaturas de língua inglesa pela mesma instituição. Sua admiração por Jane Austen começou ainda na adolescência e continua crescendo a cada ano.
Contato: schabbach.giulia@gmail.com
6 Comentários
Sou suspeita neste comentário, mas achei o texto maravilhoso!! Parabéns minha filha por este breve, mas rico conteúdo cultural.
Que shooow. Não sou suspeita com a Tati e adorei Giulia!!! Parabéns ❤️❤️
Adorei o texto e a gentileza com que trata os aspectos da obra desta autora que explora tão bem o universo feminino (para dizer o mínimo).
Embira eu nunca tenha lido as obras literárias, eu já assisti quase todas as versões dos filmes baseado na sua obra. Orgulho e Preconceito é o meu preferido, menos pelos meus conhecimentos literários e mais pelo meu romantismo (hehe). Quem nunca quis um Sr Darcy para chamar de seu? Obrigada pelo texto Giulia. Beijo.
Parabéns pelo excelente texto e agradeço por aceitar o nosso convite. Que seja a primeira de muitas outras dicas culturais.
Belíssimo texto…parabéns!
Tive a sensação que o universo se ampliou, ou seja, li e não percebi tantos detalhes primorosos.
Obrigada.
Ótimo texto!! Sou fã de Austen e, especialmente, desse romance. Aprendi muito com a Giulia. Parabéns e obrigada.