Como habitualmente faço, ao acordar e ainda na cama, dei o clique no controle da TV. Ao se abrir a tela, sorridente repórter anunciava:
“Daqui a cinco minutos, exatamente às 07h45min, começa a primavera, a estação das flores e da alegria.” “Hoje, dia e noite terão exatamente a mesma duração, é o equinócio!”, completou outro apresentador.
Mania besta esta de definir, limitar e matematizar tudo, pensei comigo. Desliguei o aparelho, mas não o pensamento.
No princípio havia o tempo. Um tempo indefinido, de repetitivo contínuo e, dentro dele, o homem, os animais e as coisas, muitas coisas. Sem muito que fazer, o homem resolveu brincar com o tempo, dividindo-o em antes e depois.
Não vendo utilidade no antes, tomou o depois, dividiu-o, subdividiu-o, agregou partes e estava criado o calendário, do qual passaria a ser refém.
O tempo de antes revolveu meu cérebro, o que me levou aos tempos de criança, quando as coisas eram aquilo que eu via, sentia ou imaginava. Tempos em que no meu vocabulário não constavam palavras como outono, inverno, verão ou primavera; exato para mim era apenas o que cabia nos bolsos ou na barriga. Daí um conceito elástico de tempo, sem limites precisos.
O tempo era o de frio, de calor, de chuva, de plantar, de cuidar e, sobretudo, o de colher. Se a erva secava, as folhas perdiam a cor e as minhas canelas e pés ressecavam e trincavam, era o tempo do frio; eu sabia. Tempo de penar para levantar cedo e de ir ao pasto ainda orvalhado buscar as vacas. Mas também tempo de, à noite, assentar-me no rabo do fogão de lenha, comer biscoito frito e ouvir casos e causos. Esses, o fermento da imaginação, as asas da fantasia. E como foram importantes aqueles momentos!…
Existe ou não assombração? Será que tem bicho deste tamanho mesmo? É possível morar tanta gente num lugar assim? Como é que ele fez para não morrer? Estas e outras dúvidas levavam a perguntas e maquinações sem fim.
Tempo de descobertas, de crescimento, tempo BOM.
Se o sol castigava, era tempo de andar rápido sobre a areia escaldante da estrada para não queimar a sola dos pés descalços. Mas era também tempo de nadar pelado no córrego e engolir piaba viva para aprender a nadar.
Tempo de aprendizagem, de derrubar mitos, tempo de CRESCIMENTO.
O tempo da chuva trazia medo do raio e do trovão, mas também o prazer de arrancar minhoca da terra, pegar o anzol e aproveitar a água suja para fisgar bagres assanhados pela enchente.
Tempo de adaptações, de superações, de vitórias sobre a natureza, tempo SAUDOSO.
Havia o tempo que era de alegria para adultos e crianças. Para os primeiros, tempo de preparar a terra, semear, cuidar da plantação e ficar na expectativa do fruto. Para as crianças, o verde macio da folhagem renovada e o agradável cheiro das flores era sinal de frutas abundantes e saborosas no campo e no cerrado. Era tempo colorido e musical, que brindava a vista com profusão de cores e os ouvidos com suave sinfonia que vinha do farfalhar manso das folhas novas e macias ao vento, do zum-zum-zum dos insetos e até da algazarra da passarinhada em festa de acasalamento.
Tempo de andar com o nariz arrebitado, inalando fundo cada perfume e sentindo antecipadamente o sabor que ele anunciava. Do quintal, vinha o cheiro da limeira, da laranjeira, da macaúba e da mangueira, em gradação sutil e agradável. Do campo, o cheiro do caju, o rei do campo, cuja floração era pressentida à distância, enquanto a da mangaba só se deixava perceber bem de perto e pela manhã.
Tempo de PRELIBAÇÃO.
O cerrado era nosso pomar, concentrava quase tudo que se podia comer de frutas silvestres. Difícil às vezes distinguir os cheiros. Ali, no campo aberto ou de transição, imperavam a pitanga, a quina, o pêssego, o figo e o caju. Acolá, no mais fechado e sombreado, se achavam o bacupari, o araticum, a mama-cadela, o pequi, o araçá, a goiabinha, a gabiroba e outros que a memória já não consegue retirar do baú das lembranças.
Tempo DELICIOSO.
Enquanto qualificava assim o tempo, veio-me à memória o que diz o autor do livro de Eclesiastes: “Tudo tem seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu.”
Mas quem controlaria esse tempo? O homem arrogou a si o direito. Controla o tempo de nascer e quer determinar quem e o que pode vir à luz. O tempo para morrer ainda lhe escapa ao domínio, mas tem buscado adiá-lo, não só ampliando o tempo de curar, o que é louvável, mas até administrando o tempo para matar, com o pretexto de preservar a saúde e evitar a morte.
Se há tempo para plantar e outro para arrancar, este tem prevalecido sobre aquele. Arranca-se sem critério e até sem necessidade, ao passo que se planta em benefício de segmentos privilegiados. Do tempo de derrubar e do de edificar também se tem abusado. As derrubadas, conquanto beneficiem poucos, prejudicam a maioria. As construções, não raro, expressam poder, ostentação e megalomania, em vez de simplesmente suprir a necessidade do ser humano.
Tempo de DESOLAÇÃO?
Nem pensar! O autor bíblico prevê também tempo para ficar calado e outro para falar. Hoje é tempo de saber que não se vive fora do tempo, que o tempo, apesar de poder ser mensurado, quantificado e qualificado, não obedece a critérios matemáticos.
È tempo de deixar o conformismo, tempo de falar, de gritar.
Exatamente tempo de DENUNCIAR.
José Salviano de Souza, Capitão Veterano do Exército, formado em Letras e Literatura Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, nasceu em Dores do Indaiá e viveu grande parte da infância a infância na área rural da cidade de Tiros, Minas Gerais, por onde passam os rios Borrachudo e Abaeté. Tiros fica na microrregião de Patos de Minas, região de campos e cerrados que apresentam a variedade de frutas comestíveis citadas na crônica.
3 Comentários
Uau! Que linda crônica !
Viajei no tempo sem relógios, onde o sol e suas sombras denunciavam as horas sem números nem ponteiro. Vivi muito isso! Minha alma é roceira, cheia de lembranças lindas, dos bandos de borbeletas e pássaros, do canto flautado do sábia laranjeira. e do estridente Joao de Barro, anunciando que o sol iria surgir na manha seguinte depois de quinze dias de invernada.
Parabéns Sr Literato…
Ao despertar hoje e consultar mensagens, já que existe no ar uma notícia indesejável a receber, e entre as várias postagens, deparei-me com o link dessa publicação, postada pelo meu amigo, e foi como o primeiro presente do dia!
………
“Olha ai Marco !
Salviano virou um amigo recente na viagem que fiz 2019 ao Japão.
Tem umas crônicas batutas como as que vc escreve !!!
Esta por ex. me levou a muitas lembranças de minha infância !!!”
.:……….
Agradeci-lhe enviando o seguinte testemunho e mensagem:
Opa!
Bom dia!☀️🌞😃
Meu caro amigo Mário Saito!
Primeiro quero lhe dizer que fiquei um pouquinho vaidoso por você achar batuta os meus “garranchos”. E depois, ficar também encantado em ler essa crônica, já que ela tem também o poder de nos levar aos nossos tempos de infância.
Não existe nada mais gostoso do que relembrar aqueles tempos ditosos. Os meus também, meu caro amigo, foram bem parecidos, lá na minha querida Piraju-SP, nas barrancas do Rio Paranapanema, e essa leitura causa-me aquele enlevo e a magia da infância de liberdade sem limite, envolvido naquela exuberante natureza!
Sim, somos filhos de um tempo , cujo privilégio de termos daquela forma vivido, faz com que hoje olhemos nossos filhos e netos crescendo em outros ambientes, ficamos chateados por eles não terem tido o mesmo privilégio e o poder de carregarem para o futuro semelhantes experiências nas suas lembranças e de, quiçá lá no futuro, ler essas crônicas e sentirem esses mesmos encantos!
Gostei muito do que escreveu seu amigo Salviano! Comungo mesmas boas sensações! Leve a ele, se acaso encontrá-lo, o meu abraço, e diga-lhe que, contando suas visões e lembranças certamente desperta em muitos a doce alegria da leitura levando-os também no tempo. Estava certo também Casemiro de Abreu, com aquela sua poesia “Meus oito anos”…
Obrigado Mario!
Abração
Crônica maravilhosa meu irmão , enquanto lia pude arremessar meus pensamentos àqueles tempos da nossa infância vivida de maneira simples mas de muitas alegrias. Não posso deixar de mencionar a nossa origem de uma família simples mas que soube projetar o futuro dos seis filhos . Um grande abraço irmão