Por centenas de milhares de anos, seres humanos foram miseráveis e morreram precocemente, ou de fome, ou por causa de violência, ou por causa de doenças. A história da humanidade é a história da inanição, das guerras e das pragas, e a vida era essencialmente solitária, brutal e curta. Estimativas apontam que a expectativa de vida, por milhares de anos, era de menos de 30 anos em todas as regiões do Planeta. Entretanto, desde 1900 a expectativa global de vida mais do que duplicou, atingindo a marca de 70 anos, com países mais ricos como Espanha, Suíça, Itália, Japão e Austrália atingindo a incrível marca de 83 anos em 2019, antes da pandemia.
Da mesma forma, há dois séculos começou a ocorrer um fenômeno chamado de o Grande Enriquecimento. Em 1820, por exemplo, o PIB global per capita estimado era da ordem de US$ 1.000, enquanto em 2018, o PIB per capita já era de US$ 15.000 (mensurado em dólares de 2011 ajustados pela paridade do poder de compra), praticamente 15 vezes maior, embora os países mais ricos tenham um PIB per capita até 40 vezes maior.
Nos séculos anteriores, a grande maioria das pessoas era muito pobre e os poucos ricos que havia eram somente os líderes tribais, reis, faraós, líderes religiosos ou quem conseguia participar nas suas cortes. Hoje em dia, temos vários bilionários, muitos milionários e um grande contingente de pessoas na classe média, enquanto o número de pessoas que vive abaixo da linha da pobreza (menos de $3 por dia) é menor do que há 200 anos, a despeito do grande crescimento populacional (7,8 bi hoje contra 1 bi em 1820). O que aconteceu a partir do Século XIX que mudou tão drasticamente a história da humanidade?
Economistas e historiadores têm se debruçado sobre essa questão e levantaram algumas hipóteses para explicar o Grande Enriquecimento. À esquerda, a hipótese levantada e geralmente aceita como verdadeira nestes meios é que o Ocidente enriqueceu por causa do colonialismo, escravidão, imperialismo e todo tipo de exploração. Entretanto, o fato historicamente relevante é que por milhares de anos estes fatores sempre estiveram presentes nas sociedades e nunca produziram um fenômeno como o Grande Enriquecimento dos dois últimos séculos. Povos antigos sempre sofreram de invasão, pilhagem, matança de homens adultos e escravidão de mulheres e crianças. O problema é que invasão e pilhagem constituem “jogos de soma zero”, que significa: o que alguém ganha tirando dos outros é o que ele perde, assim como numa partida de futebol – quando um time ganha o outro necessariamente perde. Adam Smith, pai da Economia e autor do famoso “A Riqueza das Nações”, de 1776, já havia escrito que estes fatores não levam à prosperidade de uma sociedade.
A escravidão, por exemplo, ele descreveu como ruim sob o ponto de vista moral por caracterizar uma grande injustiça, que é a ausência de liberdade individual, levando à submissão de seres humanos às vontades, por inúmeras vezes sádicas e violentas, dos seus senhores. A escravidão também era ruim sob o ponto de vista econômico, pois pessoas livres, buscando melhorar sua própria condição de vida, têm bons incentivos para trabalhar com mais eficiência e resolver da melhor forma possível seus problemas cotidianos. Adicionalmente, Adam Smith desenvolveu a ideia de “jogos de soma positiva”, que ocorrem sob trocas voluntárias, onde ambas as partes envolvidas numa transação se beneficiam.
Ele considerou, então, que uma sociedade organizada em torno do sistema de direitos naturais – direito à vida, propriedade e liberdade – teria as condições necessárias para seu enriquecimento. O impressionante é que ele escreveu isso décadas antes do Grande Enriquecimento, como se estivesse prevendo o que estava por vir.
Economistas e historiadores também têm produzido outras explicações. Capital, direitos à propriedade e comércio, educação e ciência são as explicações mais típicas. O problema é que estes fatores, embora desejáveis e presentes no Grande Enriquecimento, não são suficientes para explicá-lo.
O antigo Egito tinha capital, acumulado na forma de pirâmides, mas isso não enriqueceu sua sociedade. Somente os faraós e suas cortes eram ricos. A Inglaterra tinha direitos à propriedade e a regra da lei já no Século XIII, mas apenas começou a experimentar prosperidade no Século XVIII. Da mesma forma, comércio existe desde a antiguidade – nas tumbas egípcias foram encontrados âmbar do Mar Báltico e pedra lápis-lazúli do Afeganistão.
Adicionalmente, educação e ciência tiveram escopo muito limitado: os EUA, que em 1900 já eram um país rico e próspero para a época, tinham apenas 6,7% de seus jovens concluindo o ensino médio, enquanto reparos, consertos e invenções motivadas pelo comércio eram muito mais importantes para o crescimento econômico do que matemática avançada, física nuclear ou biologia. Esses fatores, parafraseando Douglass North, Nobel em Economia, descrevem o crescimento econômico e o enriquecimento, mas não o explicam.
Se as explicações convencionais não são suficientes para explicar o Grande Enriquecimento, quais seriam então suas causas? A grande economista e historiadora Deirdre McCloskey escreveu uma trilogia extensa de mais de 1 mil páginas, intitulada de “As Virtudes da Burguesia”, que provê suporte econômico e histórico à sua tese original, que diz que ele ocorreu a partir de uma mudança radical das ideias sobre inovação e sobre a dignidade e aceitação social de comerciantes e empreendedores ao longo dos últimos séculos. Foi uma mudança de mentalidade e de atitudes anticomércio em direção a posturas favoráveis que produziu o Grande Enriquecimento. Foram as ideias de liberdade, igualdade e dignidade para todos, especialmente em relação à anteriormente desprezada burguesia, aquela classe de comerciantes e negociantes, que permitiu que a “discordância com modificação” dos empreendedores se tornasse aceitável e tolerável. Foi a aceitação ética e moral da “inovação sem permissão” que permitiu o enriquecer o mundo. Foi, fundamentalmente, o que Deirdre McCloskey chama de “acordo da burguesia” que permitiu o Grande Enriquecimento.
O acordo da burguesia “Me Deixe em Paz que eu te Enriquecerei” (título do novo livro da McCloskey), pode ser facilmente contrastado com os outros acordos sociais conhecidos, como explica seu coautor Art Carden: o acordo da aristocracia (“sou aristocrata de berço, então me honre e me obedeça que talvez eu não vá torturá-lo nem matá-lo em batalha”); o acordo Bismarckiano ou do estado do bem-estar social (“honre o estado moderno como seu mestre e provedor e ignore as instituições da sociedade civil que fornecem coisas como saúde e previdência, que então você não será explorado pela burguesia nem assassinado pelos bolcheviques”); o acordo Bolchevique (“nos dê de acordo com suas habilidades, que são determinadas pelo Partido, consuma somente de acordo com suas necessidades, que o Partido também determina, e siga nossos planos econômicos. Não nos pergunte por que os membros do Partido levam uma vida nababesca enquanto seus filhos sofrem com tudo quanto é tipo de privação e, se você tiver sorte, não iremos acabar contigo em um campo de concentração”), e o acordo da burocracia (“me honre, sou seu dono e mestre pelas virtudes de minha educação mais refinada e superior, cumpra as regras detalhadas que eu escrevo para você, não tome nenhum risco que eu não ache aceitável e nem pense em abrir um negócio ou tentar algo novo sem pagar pela licença que eu emito e, fundamentalmente, não tente fazer nada sem obter minha aprovação senão eu te multarei e te prenderei”).
Ocorre que com o acordo da burguesia e o decorrente Grande Enriquecimento os mais pobres se beneficiam na sociedade. Não foram os reis e nobres os grandes beneficiados pela energia elétrica, pelos preços mais baixos da comida e pelo saneamento básico, pois eles contavam com batalhões de serviçais que mantinham as velas acesas, preparavam seus banquetes e lidavam com os seus dejetos. Talvez mais importante ainda seja o fato de que não estejamos apenas enriquecendo, mas ficando melhores.
Enriquecimento material e longevidade nos permitem fazer mais daquilo que valorizamos, seja aproveitar melhor os prazeres dos esportes, das artes, da literatura, da ciência, da convivência com amigos e da família, ou buscar elevação espiritual. Ter uma vida mais próspera e longeva sob o acordo da burguesia nos permite buscar alcançar com nossos próprios meios, o que filósofos como Aristóteles e economistas como Edmund Phelps chamam de “uma vida boa”.
Indicadores sociais como expectativa de vida, renda, saúde melhoraram muito nos dois últimos séculos e continuam a melhorar. Mais e mais pessoas no mundo escapam da pobreza extrema e melhoram suas condições de vida não por causa do comando e controle, tutela, auxílios, subsídios e proteção de governos, mas porque estão aceitando o acordo da burguesia e resistindo à tentação de se imiscuir nos negócios e afazeres alheios.
1 comentário
Simplesmente brilhante.