A crônica do colaborador Salviano José de Souza vai muito além de pescaria. É lição de vida. É exaltação à Vida. É sensibilidade de doces recordações de menino da roça. É louvor à Natureza. É incentivo para enfrentar dificuldades.
Ainda que você não aprecie pescaria, leia-a. Você se sensibilizará.
VENHA PESCAR
“Viver é muito perigoso” (G. Rosa)
Riobaldo, herói de Guimarães Rosa, disse que é perigoso viver. Ao inventariar e relatar os perigos que enfrentou, ele, na verdade, está se afirmando como pessoa realizada, satisfeita, vencedora; o herói de uma vida bem vivida.
Viver é vencer desafios, porquanto a vida é um desafio em si. O perigo é quase sempre relativo, pois está mais no desconhecimento da situação que propriamente nas dificuldades. O conhecimento minimiza ou mesmo anula o perigo.
Eis o grande desafio na vida do ser humano: buscar conhecimento sobre a situação a ser enfrentada, para superar as dificuldades a ela inerentes. Superando-as, sobrevive e, sobretudo, prepara-se para novos enfrentamentos.
A criança enfrenta desafios constantes; alguns difíceis, outros nem tanto. O que importa é tentar, é fazer, é repetir, se preciso for, é acumular experiência, é montar uma história e construir uma saga.
Quando criança, para mim a pescaria era uma aventura. O anzol, comprado na venda, era a única coisa pronta de que lançava mão. A vara não era problema; o bambuzal ficava logo ali no fundo do quintal. Para prender e transportar as minhocas que arrancava embaixo do jirau que a mãe usava para “lavá vazia”, tinha o cornimboque (tabaqueira feita de ponta de chifre de boi) feito com algum pescoço de cabaça recortado, a que punha alça de embira.
A linha era sempre de fabricação própria, feita com braçadas de linha de carretel da mãe, que dobrava ao meio, prendia no prego da porta, segurava uma ponta com os dentes, enrolava bem a outra e depois soltava. Estava pronta a linha de pesca. A operação nem sempre dava certo e exigia mais tempo e material, o que normalmente contrariava a dona do carretel.
A chumbada, também de fabricação caseira, era o que mais dava trabalho. A primeira dificuldade consistia em conseguir o chumbo, mas sempre se dava um jeito. O “Si vis pax..” dos romanos no interior significava “Quem num qué increnca anda armado”, e todos levavam o ditado a sério e se preparavam.
Tiros eram disparados à vontade: em bichos, em barrancos, em árvores, em tábuas de porteiras…
Criança da roça nunca anda desligada. Está sempre atenta, integrada ao ambiente, captando alterações e aproveitando o que ele oferece. É uma frutinha aqui, outra acolá. Um ninho de passarinho escondido na moita que vai conferir. Um rastro de cobra que cruzou a estrada. Um marimbondo caçador arrastando um mandruvá bem maior que ele. Um rola-bosta atarefado, tentando cruzar a estrada com sua bola de excrementos. Uma formiga chiadeira a ser perseguida e presa… e dezenas de coisas mais que despertam a curiosidade das crianças.
Nessas dezenas de outras coisas se incluíam as porteiras, quase sempre fonte de matéria prima para a chumbada. O canivetinho de bolso fazia a cirurgia de remoção.
A confecção da chumbada exigia criatividade, imaginação, paciência e trabalho de equipe e apresentava lá seus perigos. Um buraquinho feito a ponta de faca no chão batido da cozinha, uma haste fina e verde de capim para vazar a chumbada e uma colher de ferro para servir de cadinho aquecido nas brasas do fogão.
Derretido o chumbo, um segurava a haste na vertical dentro do buraquinho enquanto o outro despejava o líquido para moldagem. Queimar a mão do auxiliar era comum. Ter que refazer a operação uma, duas ou mais vezes era também normal, já que o segurador de haste nem sempre permanecia com ela na posição correta.
Juntar as peças e montar a tralha era coisa rápida. O que atrasava um pouco era ouvir o sermão da mãe:
– Calça as “precatas”, põe o casquete, anda só no trio, cuidado com as vacas e as cobras, não fica “comeno” porcaria do mato e não chega na beira de poço fundo, que “ocês num sabe nadá”.
Estas eram as primeiras contas de um rosário infindável de recomendações.
Os peixes? Estes estavam lá no “corguinho”, só esperando. Muita piaba do rabo vermelho e bagre bigodudo, um na água limpa e outro na água de enchente. Quando a enchente demorava e a vontade de comer ensopado de bagre apertava, o recurso era ludibriar o bichinho, jogando bastante cisco na cabeceira do poço, sapateando barro na água e aguardando a mancha suja ir descendo. Uma isca dava para fisgar uns três ou quatro e em pouco tempo o ganchinho estava cheio.
Cada pescaria era uma aventura.
Hoje as coisas andam muito diferentes. O anzol já vem com encastor e chumbada. A linha corrente do carretel virou nylon. O bambu agora é fibra de carbono e vem com molinete. A minhoca é artificial. O cornimboque é caixinha compartimentada. O fogo queimou a frutinha do mato, que foi substituída pelo sanduíche. O “Corguinho” virou pesque-pague. A vaca, o açougueiro matou. A cobra, levaram para o Butantã. Para não se afogar há colete. Assim, a criatividade está indo “pro brejo”.
Se você teve o privilégio de ter enfrentado desafios semelhantes na infância e anda muito ocupado, pare um pouco. Desligue o ar-condicionado e o computador, feche seu escritório, vá pra beira de um “corguinho”, enfrente os mosquitos, troque o barulho do trânsito pela sinfonia da mata, sinta o prazer do contato com a Natureza. Esses os desafios que valem ser enfrentados.
E você que não sabe por que anzol é torto, que acha que chumbada é só uma pessoa embriagada, que conhece peixe apenas de restaurante ou de peixaria e que só vê mata e rio na TV, não desanime, nunca é tarde para aprender e para viver.
Fuja da clausura do apartamento, do inferno do tráfego represado, da negatividade da TV, da artificialidade do cinema, da mesmice do shopping, troque a selva de concreto pela Natureza concreta, enquanto ela ainda existe.
Venha pescar…
Viver é perigoso, mas vale a pena!
SALVIANO José de Souza, Capitão Veterano do Exército, Formado em letras pela PUC/MG, Colaborador do PORTALIMLHER.
8 Comentários
Muito bom, é ler imaginando todo o discorrer das cenas e curtindo o “minerês”
Parabéns ao autor!
Parabéns ao Capitão Salviano
Ótimo texto “Pescaria”.
Adorei bela historia….
Lendo e passando um filme na cabeça de uma ótima infância, pra quem não viveu isso, ainda há tempo. Parabéns ao autor Sr. Salviano.
Muito boa a crônica. Não vivi na roça mas ia muito, o suficiente pra sentir a nostalgia durante a leitura.
Viva meu irmão! Sempre rememorando as experiências vividas na Infância de ouro que tivemos , da família simples e equilibrada que nos conduziu mostrando as trilhas bem sucedidas do mundo . A sociedade evoluiu a passos lentos e agora estamos aqui continuando a história pra deixar um bom legado aos nossos filhos, netos e bisnetos.
Parabéns e obrigada por proporcionar lembranças da infância.
O autor consegue nos fazer viajar com leveza e precisão, no tempo/espaço, de um mundo de aventuras e sorrisos.
Ótima distração.
Foi criada na fazenda do meu pai… já passei por tudo esso… tenho muita saudade desse tempo