Ter acesso ao ensino escolar aos 8 anos já foi uma desvantagem para mim, mas com empenho superaria o dano. Ainda haveria problemas pela frente pra dificultar minha caminhada.
– Mãe, pode fechar a galinha de pinto?
– Tá cedo.
– Não tem mais galinha no chão, tudo no poleiro.
– Uai, galinha empoleirando hora dessa!
– Tá escurecendo, mãe!
– Que isso menino, a gente jantou ainda agorinha!
– Tá armando chuva, vai lá fora pra senhora ver!
Ela ainda não tinha chegado na janela e um raio caía na cerca de arame perto do curral. Pareceu até que o fogo passou dentro de casa, clareou tudo.
– Meu Deus, seu pai tá lá fora e ele morre de medo de chuva.
– Leinvem(1) ele desembestado, mãe!
– Aí meu deus, cobre o espelho digeiro(2)! Valei-me, Santa Bárbara! (Fez rápido a oração da santa…)
O pai entrou parecendo que tinha visto assombração. Pegou a capa ideal e tocou pro abrigo dele, a casa de despejo. O teto de folha de bandarra(3) não deixava passar nem barulho de chuva de pedra; isso dava segurança pra ele.
– Larga mão desses pintos e vem pra dentro, mulher!
É que minha mãe pelejava pra prender a galinha de pintos.
– Senhora d’Abadia! Vai ter outro dilúvio…
Santa Bárbara devia estar ocupada com alguma chuva pra outras bandas, pois pra nossa não resolveu foi nada.
Não choveu: a nuvem desmanchou em cima da gente. Trovão, raio, vento, e água, muita água, um destempero(4).
Na manhã seguinte, a gente viu os estragos, um absurdo: árvore torcida, galho quebrado, bananeira deitada, casa destelhada, mas o abrigo do pai inteiro e a pintaiada(5) da mãe salva.
Almoçamos e fomos pra escola. Um susto ao chegar. O madeirame do teto e das paredes (taipa) comido pelos cupins e com o peso do capim molhado não aguentou, só sobrou esteio.
Sem graça a meninada rodeava a tapera.
– Não vai ter escola não, podem caçar rumo. Avisou Dona Liquinha.
– Que dia que vai ter, professora?
– Só quando arrumar outra casa.
Voltamos chués.
– Quê que foi, chegando uma hora dessa? Indagou a mãe.
– Não tem mais escola, a chuva derrubou a casinha.
– Ai que dó, logo agora que começavam a ler…
Pai arreou o cavalo e foi pra Serra. Voltou já tarde.
– Conversei com a Liquinha e pelo menos o mais adiantado vai continuar tendo escola.
– Como? A mãe entrou na conversa.
– Ela vai ensinar na loja, do lado de dentro do balcão.
– Só tem uma coisa: sozinho, eu tenho medo, é longe e tem a cava assombrada.
– E a cavalo, perguntou meu pai.
– Aí eu tenho coragem.
– Pois então a partir de amanhã você pega o relógio e vai estudar.
O Relógio, eu explico, era meu cavalinho ensinado e de estimação. Mais manso que a mãe da paciência, minha mãe falava.
No pasto, a gente subia num toco, cupim ou barranco e chamava:
– Relógio, Relógio, Relógio….
Ele levantava a cabeça, assuntava e quando via a gente, vinha trotando encostar. Era montar e segurar.
A vaca disparava, ele passava na frente e cercava, ela desguiava, ele atrás. O cavaleiro destreinado sobrava na curva, ele estacava e era só montar de novo. Nunca fomos pisados.
O Relógio, que já era de estimação, virou transporte escolar. O primeiro de que ouvi falar e melhor, a fazer uso.
Manso e humilde de montaria, Relógio encontrou seu descanso na fazenda; não morreu, transformou-se em um Pégaso e ascendeu ao céu equino.
Além dos muitos serviços prestados, garantiu minha caminhada em busca do conhecimento.
– Obrigado, RELÓGIO!!!!!
A propósito aí vai a oração pra pedir a proteção de Santa Bárbara:
Santa Bárbara se alevantou
Seu pézinho direito calçou
Nossa Senhora encontrou
Esta lhe perguntou
– “Onde vais Santa Bárbara?”
– “Vou espalhar a trovoada
Que no céu anda armada.”
– “Espalha-a lá para bem longe
Onde não haja perca nem vinho
Nem flor de rosmaninho.”
Dicionário dos regionalismos:
(1) Lainvém: regionalismo, o mesmo que lá vem (semelhante ao regionalismo goiano leinvai = lá vai)
(2) Digeiro: regionalismo equivalente a ligeiro. Usado por semelhança a depressa, devagar.
(3) Bandarra: regionalismo para a palmeira indaiá (coco indaiá = coco bandarra). Palmeira abundante nas margens do Rio Borrachudo.
(4) Destempero: regionalismo equivalente a exagero.
(5) Pintaiada: regionalismo equivalente a ninhada (pintos).
3 Comentários
Linda escrita. Muito parecido com a minha infância e juventude na roça.
Parabéns Capitão Salviano.
Adoro ler toda estória relacionada a roça me faz voltar a minha infância
Gostei Bastante. Obrigada pela oração de Santa Bárbara.