Por José Salviano
Há alguns dias, ao visitar o PORTALIMULHER em busca de boa leitura, constante na revista, deparei-me com o artigo sobre doação de sangue. A leitura me transportou aos tempos de jovem doador de sangue, fazendo-me reviver involuntariamente acontecimento cômico. Ou trágico, a depender do ponto de vista do leitor.
Memória involuntária é subcomponente da memória que ocorre quando objetos, ações, situações ou eventos na vida cotidiana evocam lembranças do passado sem esforço consciente (Wikipédia).
Marcel Proust, ao comer madeleines embebidas em chá oferecidas por sua mãe, teve a memória involuntária ativada e produziu sua grande obra, “La Recherche du Temps Perdu”. O artigo lido no PORTALIMULHER foi minha “Madeleine”. Afinal, conversa puxa conversa; leitura puxa leitura e, sobretudo, lembranças.
Conto o fato.
Quarta feira. Tarde de folga no serviço.
Plano: almoçar e pegar um cinema mais tarde.
Mudança de Plano: Ir ao hospital doar sangue para o marido da vizinha, que se acidentara, estava hospitalizado e precisava de sangue. Segundo minha mulher, de meu sangue.
– “Que tipo de sangue precisa ele?”, atrevi-me a perguntar.
– “Ó Positivo”, ela disse, “mas o hospital aceita qualquer um”.
Fim de meus argumentos. Nome do paciente e endereço do hospital na mão, lá fui eu.
Ao chegar ao hospital, fui encaminhado para uma sala de espera.
“Sala de Espera”, nome pomposo para “sala de parto de ansiedade”. O bom demora uma eternidade a chegar, e o mau entra antes de você aparecer.
Nas salas de espera, ter alguma coisa à mão para ler é a fórmula que uso para estar em paz no ambiente de ansiedade.
A fórmula não me decepcionou; esperei apenas duas páginas de leitura e logo fui chamado para a entrevista que antecede às doações
Respondi a perguntas de praxe e, aprovado, fui encaminhado ao banco de sangue.
Surpresa! O banco estava ocupado por pedreiros e bombeiros, que faziam a reforma do local. Mandaram-me para a sala ao lado.
Segunda surpresa! A segunda sala também estava sendo usada.
Terceira surpresa! A enfermeira montou seu banco de coleta embaixo da escadaria que levava ao piso superior, dividindo o espaço com caixas de papelão e sacos de papel grosso ali empilhados. Estranhei, mas não sendo eu fiscal sanitário e sim doador, concordei em doar o sangue no local improvisado.
Torniquete no braço, apalpação pra achar a veia, mais visível que sol do meio dia, desinfecção do local da agulhada… procedimentos de praxe…
– “O senhor vai sentir uma picadinha, viu?”, comentou a enfermeira.
– Vá em frente, não vou gritar.
É certo que investida de touro não pode ser parada nem desviada. A enfermeira já havia disparado a agulha quando uma barata surgiu do nada (ou das caixas?…) e achou a perna dela na rota de fuga.
Senti a picada. E que picada!… Teria atravessado até o couro de um elefante. Não sendo eu paquiderme, recuei a tempo e, mesmo assim, a veia foi traspassada com a cartilagem cotovelar escapando por pouco.
Simultâneo à picada, ouviu-se um grito. Juro que não foi meu.
Quanto mais a enfermeira gritava e pulava, mais a barata subia por sua perna. A primeira coisa que ela fez foi deixar a agulha enterrada em meu braço. A segunda, livrar-se do jaleco. A terceira seria, com certeza, desfazer-se do restante da roupa, mas foi dominada a tempo. Não lembro se ela chegou a desmaiar. O fato é que ela foi retirada da arena mais rápido que peão de rodeio apeado involuntariamente.
Minha mulher diz que sou tão calmo que, no juízo final, as trombetas tocarão e eu ficarei para trás. Atribuo o comentário apenas à implicância feminina.
Arranquei a agulha da seringa de extração sanguínea do braço e, nos segundos que gastei para alcançar esparadrapo, o sangue esguichou longe, decorando boa parte do corredor.
Dominadas a barata tonta e a enfermeira, mataram o inseto, limparam o corredor e, enfim, se lembraram de mim.
– E o senhor, como está?, alguém perguntou.
– Uai, só aguardando a substituta e um vigia de baratas para completar a coleta.
Completei:
– Espero não ser porque o hospital “está entregue às baratas” que o paciente vá morrer por falta de sangue!
Perdi meu cinema, a barata morreu, o paciente sobreviveu.
Lições extraídas: evitar “barata tonta”; não frequentar lugar “entregue a baratas”; e “ter sangue de barata” pode ser útil em momentos estressantes.
José Salviano, Capitão Veterano do Exército, formado em Letras e Literatura Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Manaus 2022
1 comentário
História maravilhosa!
Tinha que ser de um militar…
Vocês colecionam crônicas da vida como ninguém.
Parabéns!