A era dourada da pirataria ocorreu no final do século XVIII e início do século XIX, e é desta época que conhecemos piratas famosos como Barba Negra, Capitão Kidd, Black Bart e o casal Anne Bonny e Calico Jack. Durante este período, a pirataria foi um grande problema para navios mercantes nas colônias e países no Atlântico Norte e no Caribe. Além do mais, quem não assistiu às aventuras de Jack Sparrow, magnificamente interpretado por Johnny Depp, em Piratas do Caribe? O fato é que piratas, o terror dos mares, impregnaram nossa cultura popular.
Pirataria era um empreendimento perigoso e de resultados incertos. Em sendo uma atividade violenta e ilegal, piratas foram perseguidos pela marinha inglesa e por caçadores de recompensas, o que decretou o fim da era dourada. Cabe aí uma pergunta: por que pirataria foi uma atividade bem-sucedida por décadas, a ponto de ter até hoje nomes conhecidos e de fazer parte da cultura popular?
Peter Leeson economista que estudou a organização econômica da pirataria, descobriu que o sucesso de seu empreendimento decorreu das soluções encontradas para problemas de governança corporativa em uma situação onde os stakeholders não tinham proteção legal. Leeson investigou a estrutura interna de governança destes violentos empreendimentos de natureza criminosa e examinou o direito, a economia e a organização dos piratas. Para organizar efetivamente suas atividades criminosas, piratas criaram mecanismos para coibir predação interna, minimizar conflitos na tripulação e maximizar os lucros da pilhagem.
Piratas criaram dois tipos de instituições com estes objetivos: em primeiro lugar criaram um sistema de freios e contrapesos para restringir predação e abusos do capitão. Em segundo lugar, eles criaram constituições democráticas para minimizar conflitos e criar lei e ordem no escopo de seu negócio. Este sistema de governança criou ordem e cooperação suficiente para fazer os piratas do Caribe uma das mais sofisticadas e bem sucedidas organizações criminosas da história. Em suma, piratas utilizaram elementos essenciais da moderna governança corporativa, que só foram melhor elaborados, tanto no sentido teórico quanto no sentido prático, ao longo do século passado – e eles o fizeram sem a ajuda do Estado ou mesmo de leis formais.

O que Barba Negra e diretores executivos (CEOs) têm em comum?
Embora esta pergunta possa parecer o início de uma piada, ela na verdade é uma questão extremamente importante para Economia e Teoria das Organizações. Todos eles lideram organizações grandes e complexas, e precisam motivar subordinados, prevenir conflito interno e, além de tudo, não devem abusar de sua autoridade. Em outras palavras, eles enfrentam problemas de governança corporativa.
Problemas de agência
Governança corporativa lida com um problema central: o problema de agência, que ocorre sempre que propriedade e controle de uma organização estão separados. São típicos problemas de agência: auto benefício (self-dealing), que ocorre quando administradores usam recursos da empresa para seu próprio benefício; perquisites que são os benefícios adicionais oferecidos a executivos e membros do conselho de administração além do salário e outras formas de remuneração padrão, como jatinhos, escritórios luxuosos e, no caso dos piratas, uma porção mais generosa de rum; baixo nível de esforço e investimento excessivo, que decorre da propensão dos administradores de expandir seus orçamentos e criar impérios em busca de poder e prestígio.
Hoje em dia, as corporações têm sistemas legais, regras de informação financeira (financial disclosure rules), conselhos independentes e direitos dos acionistas para lidar com estes problemas. O que aconteceria se elas não tivessem nada disto? Ou se a corporação fosse um empreendimento ilegal?
Piratas como empreendedores criminosos
Piratas operavam organizações enormes, multiétnicas e multiculturais com grande mobilidade no mar, frequentemente com 80 a 200 membros e maiores do que a maioria das tripulações da marinha mercante. Seu sucesso por décadas promovendo pilhagem ocorreu pois eles conseguiram solucionar dois problemas centrais: prevenir predação e abusos do capitão e minimizar conflitos entre membros autointeressados da tripulação.
Em navios mercantes, os capitães eram frequentemente déspotas e opressores. Eles eram apontados pelos proprietários das embarcações para administrar a tripulação e tinham amplos poderes para estabelecer punições, pagamentos, provisões e a rota de navegação, e frequentemente abusavam de seu poder. Esta autocracia era eficiente sob o ponto de vista do proprietário, mas era muitas vezes abusiva e cruel para a tripulação. De fato, muitos marinheiros se tornaram piratas por causa do tratamento cruel recebido em navios mercantes.
Piratas resolveram este problema elegendo seus capitães e removendo-os do cargo pelo voto. Capitães piratas também tinham poder limitado. Eles comandavam em situações de combate, mas nas decisões do dia a dia, como cuidar da disciplina, pagamentos e logística, as tarefas cabiam ao contramestre, que também era eleito. Curioso é que esta separação de poderes é semelhante aos sistemas constitucionais modernos como a nossa Constituição Brasileira e a Americana, tendo inclusive antecedido esta última.
Piratas também tinham constituições escritas, que eram artigos estabelecendo explicitamente termos de concordância. Estes documentos estabeleciam regras de comportamento, definiam como a pilhagem seria dividida, especificavam punições para roubo, covardia e insubordinação, e eram ratificados por unanimidade, de forma que somente marinheiros que concordavam integralmente com o acordo poderiam embarcar no navio pirata.
Estes acordos escritos são equivalentes aos atuais estatutos sociais das empresas, ou ainda acordo de parceria, mas foram desenhados para um mundo sem a proteção de governos ou de leis formais. Eles resolviam problemas de coordenação e minimizavam disputas internas ao prover um sistema autoaplicável de normas, baseado nos interesses coletivos de sobrevivência e de lucro.
O que torna a governança corporativa dos piratas admirável é sua natureza autoaplicável. Piratas não podiam contar com um judiciário ou com a polícia para resolver disputas, nem processar os outros por quebra de contrato. Ainda assim, eles conseguiram sustentar cooperação entre grandes grupos de homens potencialmente violentos. Isto é o caso de governança privada, que são regras e instituições criadas e aplicadas pelo grupo, e não pelo governo.
De volta à moderna governança corporativa
A literatura moderna de governança corporativa evoluiu a partir das necessidades de resolução de problemas de agência, decorrentes da separação da propriedade e controle dos ativos das empresas. Inicialmente, autores como Berle e Means enfatizaram o problema de autobenefícios. Eles acreditavam que um sistema legal era essencial para proteger os acionistas contra a expropriação pelos administradores. Posteriormente, Jensen e Meckling enfatizaram privilégios (perquisites) dados à alta administração. A solução encontrada foi conceder incentivos privados, como tornar os administradores acionistas da empresa. Finalmente, Michael Jensen foi precursor da ideia de que um problema fundamental é superinvestimento e a busca por maiores orçamentos e expansão demasiada das empresas. A solução proposta estava associada a criação de dívida e aquisições (takeovers) como forma de ameaça de mudança de poder para forçar maior disciplina pelos administradores.
Tanto piratas como as modernas corporações enfrentaram os mesmos problemas, os problemas de agência. Ocorre que a estrutura da governança corporativa, seja ela legal ou privada, depende crucialmente do tipo de problema de agência e das ferramentas disponíveis. Os piratas operavam em um mundo diferente do nosso, com restrições mais pesadas. Eles não contavam com a proteção de um sistema legal e tinham um risco do negócio extremamente elevado. As soluções que encontraram foram bastante engenhosas e adaptativas.
Lições de governança corporativa do CEO Barba Negra
Como um pirata bem-sucedido, Barba Negra seria também um ótimo CEO moderno. Da sua prática, podemos assimilar algumas lições fundamentais: i) Democracia e descentralização podem disciplinar autoridade, mesmo em contexto de elevadíssimo risco. Ii) Regras escritas e acordos autoaplicáveis muitas vezes são mais importantes do que a regra formal da lei. Iii) Instituições se adaptam para resolver problemas específicos de agência, tanto nas corporações modernas quanto em um navio pirata.
Piratas são vistos hoje em dia como criminosos e violentos fora da lei. Entretanto, eles criaram soluções para os mesmos problemas que as empresas modernas enfrentam: como alinhar incentivos, limitar abusos de poder e tornar cooperação sob extrema incerteza sustentável. Eles foram inovadores e precursores de práticas hoje consideradas pilares da boa governança corporativa. A história dos piratas mostra também que a ausência do Estado não impede a emergência de soluções institucionais sofisticadas. Ao contrário, pressões extremas podem acelerar a inovação organizacional.
Da próxima vez que você ouvir um palestrante de governança corporativa, pergunte o que um CEO moderno faria melhor do que o Barba Negra e deixe-o ter certeza de que não se trata de piada. A resposta pode exigir boa reflexão e lhe surpreender.