Na Grécia Antiga, berço do mundo ocidental, a beleza era considerada dom divino e estava intrinsecamente ligada à virtude e à moral. O conceito de “kalokagathia” (καλοκαγαθία) unia o belo (καλός) ao bom/virtuoso (ἀγαθός), estabelecendo um ideal de harmonia entre corpo e espírito.
Padrões de beleza dizem respeito a normas estéticas impostas pela sociedade e variam de acordo com o tempo e lugar. Nos dias de hoje, as regras são ditadas pela mídia e pelas necessidades de mercado, que influenciam não apenas o comportamento como a própria noção de gosto. Ainda que no decorrer da história esses padrões mudem, a preocupação com a beleza permanece e o culto ao corpo ascendeu.
A transição de uma apreciação filosófica da beleza para a obsessão doentia pela perfeição física ilustra como nossa relação com a estética se transformou drasticamente ao longo dos séculos e tem gerado consequências devastadoras para a sociedade moderna.
A pressão para se adequar a padrões irreais de beleza transcende questões de gênero e afeta pessoas de todas as idades, inclusive crianças. Enquanto na minha infância brincávamos de boneca, hoje as pequenas scrollam telas de celular em busca de tutoriais de maquiagem e dicas de “como ser bonita”, manifestando crescente insatisfação com a própria aparência.
Crianças preocupadas com produtos de skincare, principalmente após vê-los sendo usados por seus influenciadores favoritos em plataformas como YouTube e TikTok, adolescentes demandando procedimentos estéticos no afã de alterar a própria imagem projetada no espelho, mulheres eternamente insatisfeitas aprisionadas a um ciclo infinito de autocrítica e autodepreciação: a indústria da beleza descobriu que, quanto mais cedo se planta a semente da insegurança, mais lucrativo é o terreno.
“Crianças e adolescentes ainda não desenvolveram a maturidade emocional e neurológica para compreender e administrar tamanha estimulação, resultando em um prejuízo importante, tanto no agora quanto na vida adulta“, reforça a psicóloga clínica, Flavia Barfknecht, de Porto Alegre/RS.
As redes sociais agravaram o problema a níveis alarmantes, se transformaram em vitrines de corpos e rostos editados, filtrados, “perfeitos”. A comparação constante se tornou um hábito natural e cada curtida, cada comentário e cada visualização reforça a mensagem cruel de que nosso valor está diretamente atrelado à aparência.
O papel do influenciador digital se tornou fundamental, uma vez que dissemina grande parte do conteúdo consumido. Da mesma forma, sua responsabilidade também aumentou: a Noruega, seguida por alguns outros países, aprovou lei em 2021 que obriga influenciadores a sinalizar edições nas imagens patrocinadas. O governo norueguês afirma que a ideia da lei é ajudar a aliviar a pressão gerada por “pessoas idealizadas na publicidade”.
“Os danos causados pela exposição às mídias sociais podem ser imensuráveis. Atualmente, nos deparamos com o adoecimento mental cada vez mais cedo. Patologias, que antes vinham de preocupações e conflitos da vida adulta, estão sendo despertados cada vez mais cedo[…]”, diz Flavia Barfknecht.
É alto o preço dessa obsessão. Os padrões dominantes perpetuam sentimentos de inadequação e baixa autoestima, o que tem gerado, segundo especialistas da área de saúde mental, aumento nos casos de ansiedade, depressão e transtornos alimentares, dentre outros distúrbios. O culto à beleza está literalmente adoecendo a sociedade. O Brasil ocupa o segundo lugar no ranking de procedimentos cirúrgicos no mundo segundo a pesquisa global da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (International Society of Aesthetic Plastic Surgery, ISAPS), realizada no início de 2023.
Mesmo iniciativas bem-intencionadas de alguns sites voltados a elevar a autoestima feminina podem inadvertidamente reforçar a fixação com a aparência física ao manter o foco no corpo como centro das discussões. Este paradoxo ilustra a complexidade do desafio que enfrentamos. A superação do culto à beleza requer transformação cultural profunda, que vai muito além de mudanças superficiais em padrões estéticos.
A busca pela perfeição não se limita apenas à aparência física, mas permeia todas as esferas da vida – acadêmica, social e profissional; para combater este problema sistêmico é necessário esforço coletivo. Tomar providências dentro de casa já é bom começo. Sempre tive a preocupação de ensinar ao meu filho valores essenciais para a construção de uma autoestima saudável. Pequenos atos, como elogiar menos a aparência e mais as habilidades e qualidades, têm impacto positivo. Incentivar a auto expressão autêntica ao invés da imitação de padrões. Mostrar que existem infinitas formas de beleza e de realização, e que todas são válidas.
Mesmo que a mídia nos imponha uma versão da beleza perfeita e idealizada que deveríamos tentar alcançar, é possível construir uma autoimagem mais positiva. Não é fácil fazer as pazes com o corpo em que você nasceu quando se é constantemente lembrado de que seus traços precisam ser “consertados”. Aceitar a si mesmo, não “apesar” de suas “falhas” aparentes, mas por causa delas, é o primeiro passo na direção correta.
Espero que resgatemos a sabedoria dos antigos filósofos gregos e possamos adaptá-la ao nosso tempo, para que mulheres e homens sintam-se livres para serem quem são, sem o peso esmagador dos padrões estabelecidos. No final das contas, a mais bela de todas as virtudes ainda está na coragem de ser e expressar a mais autêntica versão de você mesma.
5 Comentários
Parabéns, Si
Que artigo maravilhoso. Feliz e belo é aquele ou aquela que sabe se aceitar e valorizar o que tem de melhor. Sua essência e criatividade. Que nunca busque os absurdos que a estão sendo impostos tanto pela mídi, quanto pelo comércio em geral da beleza idealizada.
As crianças merecem uma infância feliz e despreocupada.
Que artigo maravilhoso em tempos onde as pessoas estão cada vez mais fúteis e preocupadas com a aparência e não com a essência
A Si abordou um tema da maior importância, porque o culto à beleza meramente estética, num padrão fora do razoável, afasta a atenção para belezas invisíveis aos olhos, mas que trazem propósito, crescimento pessoal e desafios: a beleza de uma mente desenvolvida e a busca espiritual. Ninguém percebe com os olhos que você tem mais conhecimento, que adquiriu maior habilidade de raciocínio, que está em paz… percebe apenas com uma boa conversa e interação de qualidade. Parabéns Si.
Artigo que aponta importante questão da atualidade, causa de sofrimento na sociedade. Não entrar na onda de influenciadores, cujos discursos pagos cheios de vieses direcionados ao marketing é fundamental. A educação para auto estima e pensamento crítico é fundamental para as crianças e adolescentes. Parabéns ao artigo! 👏👏👏👏
Artigo que aponta importante questão da atualidade, causa de sofrimento na sociedade. Não entrar na onda de influenciadores, cujos discursos pagos cheios de vieses direcionados ao marketing é fundamental. A educação para auto estima e pensamento crítico é fundamental para as crianças e adolescentes. Parabéns ao artigo! 👏👏👏👏