Por Simone Hillbrecht
Lançada em outubro de 2020, O Gambito da Rainha (The Queen’s Gambit), minissérie baseada no romance homônimo de Walter Tevis de 1983, está de volta na plataforma.
Contém spoilers!
Intrigante e cheio de conflitos complexos, uma produção sobre xadrez normalmente não seria tão empolgante, mas a direção e roteiro de Scott Frank oferecem não apenas uma boa visão do mundo não tão conhecido do xadrez, mas a vida da mulher na década de 1960 e ainda por cima, a bela moda projetada em figurinos altamente estilizados.
“O Gambito da Rainha” conta a história de Elizabeth Harmon (interpretada por Anya Taylor-Joy), órfã aos nove anos de idade devido ao falecimento inesperado de sua mãe e à ausência de seu pai, que passa a viver em um orfanato em Lexington, Kentucky, no ano de 1967.
Quando solicitada a limpar os apagadores de giz no porão do abrigo, ela vê o zelador, Sr. Shaibel (Bill Camp), um jogador de xadrez quase exímio que montava o tabuleiro para jogar sozinho. Curiosa como era, Beth se aproxima, observa as regras e acaba jogando a sua primeira partida contra ele. O sr. Shaibel percebe sua genialidade. Beth se revela uma prodigiosa enxadrista.
A título de curiosidade, a personagem Beth Harmon foi amplamente baseada naquele que é considerado um dos maiores enxadristas da história: o americano Bobby Fisher (1943-2008).
Ainda no orfanato, ela desenvolve o vício por calmantes, que chamava de “vitaminas”. Beth atribuía sua atenção aos detalhes do jogo por estar sob o efeito dos medicamentos: usava as pílulas para jogar e praticar xadrez com peças imaginárias em cima de sua cama, no tabuleiro que visualizava no teto. O vício a acompanhou até a idade adulta.
Uma das partes mais emocionantes da série é a relação entre Beth e a mãe adotiva. Embora seu pai adotivo não estivesse em sua vida por muito tempo, sua mãe, Alma (Marielle Heller), abraçou a maternidade. Ela não apenas apoiou Beth com tudo o que tinha, mas garantiu que a filha experimentasse todas as oportunidades que lhe foram dadas para jogar xadrez.
A minissérie teve como pano de fundo de seu enredo o mundo das competições de alto nível do xadrez e seus realizadores tiveram a preocupação de torná-lo o mais realista possível, imitando a atmosfera competitiva dos torneios, com gestos, posturas e diálogos típicos deste ambiente, para revelar de forma crível toda a tensão presente.
Para adicionar credibilidade, uma preocupação adicional foi a de mostrar posições de partidas realizadas entre alguns dos melhores jogadores profissionais de xadrez ao longo do tempo, pois filmes anteriores sobre xadrez sofreram pesadas críticas ao apresentar posições que não faziam sentido para os profissionais. Desta forma, “O Gambito da Rainha” foi feito da forma mais realista possível para agradar não somente o público em geral, mas a comunidade enxadrística também.
Este objetivo foi alcançado com a contratação de consultores profissionais, como o famoso técnico de xadrez americano Bruce Pandolfini e o ex-campeão mundial russo Garry Kasparov, considerado por muitos o melhor jogador de xadrez de todos os tempos. Pandolfini teve maior envolvimento no roteiro, ao ajudar a desenvolver o clima dos torneios dos campeonatos americanos e indicar posições de partidas de jogadores de alto nível. Kasparov teve grande influência na caracterização dos jogadores soviéticos (sempre acompanhados por membros da KGB) e na seleção da partida final do filme, quando Beth Harmon enfrenta pela segunda vez o fictício campeão soviético Vasily Borgov em um torneio na Rússia, quando consegue finalmente vencê-lo.
Kasparov selecionou uma partida extremamente complicada entre o genial Vassily Ivanchuk, da Ucrânia, considerado um dos enxadristas mais fortes que nunca venceram o Mundial de xadrez, e o campeão americano Patrick Wolff, jogada em 1993. Coerente com o filme, nesta partida Ivanchuk usa a abertura do gambito de dama e ela termina empatada.
Ocorre que a partida jogada no filme segue a original até o meio de jogo, quando Borgov pede o adiamento para continuar no dia seguinte, prática comum nos anos 60 em partidas muito longas. A partir daí, Kasparov, possivelmente com a ajuda de outros enxadristas de altíssimo nível e de poderosos softwares de computador, torna a partida mais complicada ainda e mais precisa, fazendo com que as peças brancas, conduzidas por Beth, vençam o jogo. Os momentos finais da partida ficam então emocionantes: Borgov oferece o empate que é recusado por Beth, pois ela descobre uma variante de ganho vendo dezenove lances à frente!
Supostamente, a inspiração desta partida final no filme, com toda sua tensão e clímax, foi o momento decisivo do embate pelo campeonato mundial de xadrez de 1972, entre Bobby Fischer e o então campeão mundial, o russo Boris Spassky. Curiosamente, Bobby Fischer, que assim como Beth Harmon era fiel a aberturas de peão de rei, naquela partida também muda a abertura para peão de dama.
Beth Harmon invadiu o mundo masculino do xadrez para conquistá-lo. Na última cena, ela é mostrada finalmente livre, autoconfiante, andando pelas ruas de Moscou vestida toda de branco, como a verdadeira Rainha que havia se tornado.
Bobby Fischer morreu em 2008 aos 64 anos. Em seu obituário, o The New York Times descreveu seu estilo de jogo com adjetivos que corroboram perfeitamente o talento de Beth Harmon: “volátil”, “dramático”, “difícil” e “brilhante”.
FICHA TÉCNICA
O Gambito da Rainha (The Queen’s Gambit | EUA, 2020) Netflix
Criação: Scott Frank, Allan Scott
Direção: Scott Frank
Roteiro: Scott Frank
Elenco: Anya Taylor-Joy, Isla Johnston, Annabeth Kelly, Bill Camp, Moses Ingram, Christiane Seidel, Rebecca Root, Chloe Pirrie, Akemnji Ndifornyen, Marielle Heller, Harry Melling, Patrick Kennedy, Jacob Fortune-Lloyd, Thomas Brodie-Sangster, Marcin Dorociński
Duração: 7 episódios
1 comentário
Adorei seu artigo, você mostra muitos detalhes da série, que eu não sabia. Eu achei que essa série maravilhosa por deixar bem claro, que apesar de todas as dificuldades do mundo, uma mulher pode ser o que quiser.