Da minha infância, sempre me lembro das férias escolares que passávamos na casa da minha avó, numa cidade pequena do interior de SC. Casarão antigo de dois andares, grande quintal com algumas árvores frutíferas como goiabeira e nogueira, horta com os mais variados legumes e hortaliças, plantas ornamentais como samambaias, orquídeas e rosas, e vários animais de granja, como galinhas, porcos e coelhos. Para um menino de cidade grande, a casa da minha avó era um paraíso propício para aventuras e brincadeiras mil. Sem falar que andávamos livremente de bicicleta com os amigos, tomávamos banho de rio e fazíamos outras coisas que deixavam as mães ensandecidas de tanta preocupação.
O que mais me impressionava era a dedicação da minha avó. Mãe de cinco filhos, ela dava conta de todas as atividades domésticas, trabalhando incansavelmente sete dias por semana. A lista de tarefas não era pequena, ia desde arrumar e limpar a casa, fazer as refeições, cuidar da horta, alimentar os animais e, claro, lavar e passar roupa. Lembro que tinha um fogão à lenha com um tacho enorme, que ela usava para ferver os lençóis que eram depois passados com um ferro à carvão e engomados para voltar ao uso. Apesar de estas tarefas lhe consumirem praticamente todos os dias da semana, ela ainda encontrava tempo para se dedicar aos netos. Minha avó era uma mulher doce e carinhosa, mas chamava a atenção a carga pesada de trabalho que tinha para manter a casa e a família em ordem. O trabalho doméstico consumia praticamente todo seu dia e ela tinha pouco tempo de lazer e para fazer coisas para si.
Em poucas gerações, a estrutura das famílias mudou muito. Elas agora são menores, as mulheres conseguem alcançar boa educação formal e trabalhar fora de casa, se casam mais tarde e têm menos filhos. As mulheres não estão mais presas ao fatigante trabalho doméstico e têm muito mais liberdade de escolha para levar a vida da melhor forma possível, mesmo que isso exija decisões difíceis, como por exemplo a administração do dilema entre carreira profissional e maternidade. O que possibilitou esta mudança estrutural nas famílias e viabilizou o processo de libertação feminina das tarefas domésticas foi o grande enriquecimento econômico que observamos ao longo do Século 20.
Em artigo recente escrito para o Handbook of Family Economics, os economistas Greenwood, Guner e Marto examinam a mudança estrutural pela qual as famílias passam em decorrência do crescimento econômico, tanto ao longo do tempo quanto entre países[1]. A mudança estrutural das famílias é caracterizada pelos seguintes fatos: i) a redução no esforço de trabalho, ii) a queda nas taxas de fertilidade, iii) o declínio do casamento, iv), a redução do tamanho das famílias, v) o aumento da escolarização e vi) a mudança de trabalho da indústria para o setor de serviços.
Nos dois últimos séculos, a redução no esforço de trabalho tem sido espetacular. Dados da economia americana mostram que em 1830 o trabalhador empregado médio trabalhava cerca de 69 horas semanais e em 2000 o esforço de trabalho havia sido reduzido para 39 horas. Historicamente, a grande maioria dos trabalhadores era de homens, mas sua taxa de participação no mercado de trabalho tem se reduzido. Era de 97% em 1860 e caiu para 88% em 2018. Em contraste, pouquíssimas mulheres participavam do mercado de trabalho em 1860 (apenas 7%) e sua taxa de participação aumentou para 74% em 2018. Embora a participação feminina no mercado de trabalho tenha sido historicamente pequena, as mulheres faziam praticamente todo o trabalho doméstico. Em 1900 elas trabalhavam em média 58 horas por semana em atividades domésticas de limpeza, cozinha e lavanderia. Este tempo caiu para apenas 11 horas em 2019. É importante observar que estas mudanças estão correlacionadas com aumentos da renda per capita ao longo do tempo nos EUA, mas este mesmo padrão é observado ao longo de vários países em um mesmo instante de tempo: países com maior renda per capita têm menor esforço de trabalho, maior participação feminina no mercado de trabalho e menor tempo gasto com tarefas domésticas pelas mulheres.
Com a redução da necessidade de trabalho doméstico por conta de inovações tecnológicas em aparelhos de uso doméstico (eletricidade, máquina de lavar, geladeira, aspirador de pó, ferro a vapor etc.) e um mercado de trabalho cada vez mais favorável à participação feminina em decorrência de substituição de força bruta por inteligência com a ascensão de mecanização e computação, a participação das mulheres na força de trabalho passou a aumentar.
A tendência histórica de queda nas taxas de fertilidade também é impressionante. A fertilidade média por mulher era de 7,4 crianças em 1800, 4,2 crianças em 1880 e 1,6 crianças em 2018. No mundo inteiro, a fertilidade cai com o aumento de renda per capita. Adicionalmente, com o aumento de renda per capita, o percentual de mulheres com 40 anos que não tiveram filhos também aumenta. No passado, baixa renda e baixa expectativa de vida tornava crucial às famílias terem vários filhos para garantir que alguns pudessem sobreviver à fome, às doenças e às guerras.
Com a redução do número de filhos e maior participação no mercado de trabalho pelas mulheres, o número de casamentos também tem declinado – os casais preferem coabitação, ou seja, preferem morar juntos, e a idade média no casamento tem aumentado. A fração de mulheres entre 20 e 24 anos que nunca casaram aumenta junto com a renda per capita.
O tamanho das famílias também tem reduzido, por causa da queda na fertilidade e o aumento do número de pessoas solteiras, tanto nos EUA quanto no resto do mundo. Em 1850 havia 5,4 pessoas em média em uma família americana e este número caiu para 2,5 em 2019. Entre países, também existe esta correlação negativa entre renda per capita e tamanho das famílias.
Anos de escolarização também aumentam com a renda per capita. Uma criança nascida nos EUA em 1876 teria 7,7 anos de escolaridade aos 35 anos, uma criança nascida em 1975 teria 14,2 anos, quase o dobro. Em 1869 apenas 1,3 dos americanos entre 18 e 24 anos estavam cursando ensino superior, enquanto que em 1997 57% estavam. O mesmo aumento de escolaridade ocorre no resto do mundo e está correlacionado com a renda per capita.
Finalmente, com a introdução de eletricidade e o motor à explosão, a necessidade de trabalho físico caiu. Isto levou a uma grande mudança na força de trabalho de ocupações do tipo “blue-collar” (colarinho azul, que basicamente envolve trabalho manual, qualificado ou não) para ocupações do tipo “white-collar” (de colarinho branco, que envolve trabalho técnico e administrativo típico de escritório), tanto para homens quanto para mulheres. Em 1860, 88% da força de trabalho masculina trabalhava como blue-collar, em 2018 a proporção era de 37%. Para mulheres, os números são 87% e 10% para 1860 e 2018, respectivamente. A mesma tendência aparece em outros países, onde o aumento da renda per capita desloca as pessoas para trabalhos que não exigem grande aptidão física.
É interessante notar que estes fatos da mudança estrutural das famílias estão relacionados entre si e são causados por elevação da renda per capita e inovação tecnológica. O indiano Amartya Sen, Nobel em Economia de 1998, argumentou em seu livro “Desenvolvimento com Liberdade” que uma coisa que todos nós temos é o desejo de enriquecer. Entretanto, este desejo não é uma manifestação de algo intrinsecamente ruim, como ganância, mas sim de uma constante busca por liberdade individual, pois pessoas mais prósperas conseguem alcançar seus objetivos de vida mais facilmente. Quem tem propriedade ou ativos consegue mais facilmente controlar as rédeas do seu destino e tomar decisões que melhoram sua existência. Pessoas pobres, por outro lado, sem ativos nem renda, têm grandes dificuldades até para garantir sua sobrevivência no curto prazo. Desta forma, diz Amartya Sen, o que as pessoas desejam é liberdade de escolha para aumentar sua capacidade de autodeterminação, o que é alcançada com enriquecimento pessoal. Enriquecimento pessoal é um meio para alcançar um fim, que é liberdade individual. Ocorre que criar um ambiente na sociedade que privilegia liberdade de escolha permite que as pessoas enriqueçam por suas iniciativas e alcancem mais facilmente seus objetivos de vida. Daí a ideia de desenvolvimento como liberdade.
O grande enriquecimento que temos observado nos dois últimos séculos tem possibilitado mudanças nos arranjos sociais de forma a facilitar as vidas das pessoas ao permitir que façam escolhas compatíveis com suas preferências e estilos de vida desejados. As mudanças estruturais que observamos na organização das famílias reflete bem esta relação entre desenvolvimento econômico e liberdade. Espero ainda que o Brasil se reencontre logo com o caminho da prosperidade, para que o imenso sacrifício pessoal que nossas mães e avós fizeram para garantir nossa qualidade de vida não seja necessário para as próximas gerações.
P.S.: Não poderia deixar de mencionar este excelente vídeo do prof. Hans Rosling, que argumenta que a criação da máquina de lavar representa uma das maiores conquistas econômicas para as mulheres, ao libertá-las do extenuante trabalho doméstico.
[1] Greenwood, J., N. Guner e R. Marto (2021) “The Great Transition: Kuznets Facts for Family-Economists” University of Pennsylvania Population Center Working Paper (PSC/PARC), 2021-65. https://repository.upenn.edu/psc_publications/65.
1 comentário
Economia da família importa. Tema quase que completamente negligenciado no Brasil. Tratava disso nos meus cursos de Economia do trabalho e usava liberdade dois professores de economiacdo trabalho de urbana champain e outros do Gary Becker. Parabéns pelo artigo.