Recentemente, o presidente Lula fez uma defesa do sistema político venezuelano e de seu amigo, o presidente Maduro, dizendo que “o conceito de democracia é relativo”[1]. Esta proposição iniciou um imenso debate na grande imprensa e nas redes sociais entre cidadãos comuns e analistas políticos tentando entender e explicar o que o presidente Lula quis dizer. Por óbvio, várias interpretações vieram à tona, desde aquelas de plena submissão às ideias do líder político justificando seu discurso, até aquelas de plena oposição política a qualquer coisa dita ou ato feito pelo atual governo. O problema é que toda a discussão se caracterizou por uma enorme superficialidade e pouca objetividade, típicas de acalorados debates políticos. Mas então, afinal, o que é democracia, para que serve e como podemos fazer bom uso?
Democracia é um conceito difícil de estabelecer com precisão. Por conta disto, existem várias maneiras de defini-la, sendo que cada definição atinge alguns propósitos pretendidos. O grande filósofo da ciência, Karl Popper, definiu democracia como uma forma de a sociedade se livrar de maus governantes sem derramamento de sangue, isto é, sem a necessidade de golpes de estado, guerra civil ou revolução. Apropriado, mas dificilmente uma definição suficiente. O economista Mancur Olson, autor do clássico e influente A lógica da ação coletiva, postulou que democracia equivalia a uma disputa entre quadrilhas pelo poder, que tinha como efeito colateral desejado a limitação de expropriação do cidadão comum pelas elites. Apropriado e compatível com a definição de Popper, embora soe um tanto quanto cínico para o cidadão comum que acredita que instituições públicas são ocupadas por autoridades benevolentes e preocupadas em promover o bem estar da população.
Existe ainda a crença de que se o país tiver eleições, então é democrático. Mas como então explicar que chamamos o nosso regime militar de ditadura, quando havia eleições gerais mesmo para presidente, embora indireta, usando um colégio eleitoral? O argumento de que eleição indireta não é democrática conflita com a mais longeva democracia do planeta, a dos EUA, onde a eleição para presidente também se dá por meio de um colégio eleitoral. Será que países como Venezuela, Cuba e Nicarágua são países democráticos porque lá existem eleições?
Outros, como autores mais inclinados à esquerda, acreditam que socialismo é equivalente à democracia e mesmo o “centralismo democrático” leninista da União Soviética era uma forma sofisticada de democracia. Marxistas-leninistas ainda fazem uma distinção entre democracia socialista e socialismo democrático (que corresponde à ideologia da ala mais à esquerda do partido democrata, nos EUA), sendo que o socialismo democrático é chamado por eles pejorativamente de “reformista” ou “social-democrata”[2].
Adicionalmente, ainda em busca de uma definição de democracia, o senso comum nos sugere que países que têm as palavras democracia ou democrático no nome, como a República Democrática do Congo, a República Argelina Democrática e Popular (Argélia), República Popular Democrática da Coreia (Coréia do Norte) e a República Democrática Federal da Etiópia, não são países democráticos! Talvez a intuição oriunda do senso comum nos dê uma percepção mais acurada do que seja democracia do que algumas ideologias populares.
Ocorre que uma definição útil de democracia precisa de alguma mensuração objetiva que permita comparações. Embora não exista uma definição precisa do que seja democracia, existem vários estudos e indicadores sobre como os países são classificados entre autocráticos ou democráticos. Esta classificação não depende apenas de eleições livres e justas, mas também da proteção de outros direitos civis e liberdades políticas, como o estado de direito (onde as leis são aplicadas igualmente a todos os cidadãos), liberdade de expressão e proteção a minorias. Um indicador de democracia muito usado é o do V-DEM (“variedades de democracia”), que classifica os países entre autocráticos (dos tipos autocracias fechadas e eleitorais) e democráticos (dos tipos democracia eleitoral e liberal). Esta classificação depende de dados objetivos e subjetivos de várias características associadas a democracias, como mais direitos individuais, maior proteção contra arbitrariedades de governo, maior capacidade dos cidadãos de participarem de decisões de governo importantes às suas vidas e maior responsabilização de autoridades de governo. Desta forma, os países mais democráticos são chamados de democracias liberais e os menos democráticos (mais autocráticos) são as autocracias fechadas.
Adicionalmente, democracias geram benefícios adicionais para seus cidadãos:
- Têm geralmente maior padrão de vida (maior renda per capita) do que outros regimes,
- Têm melhor governança do setor público, que se traduz em governos menos arbitrários e mais eficientes,
- Tendem a crescer mais rapidamente: a transição de uma autocracia para uma democracia leva a um ganho médio de 20% do PIB ao longo do tempo,
- Associadas a maior renda per capita, democracias tendem a ser mais estáveis e menos vulneráveis a revoluções, guerras civis ou golpes de estado,
- Democracias liberais se envolvem menos em guerras contra outros países,
- Geram uma vida mais pacífica dentro do país, com menos criminalidade.
De acordo com o Relatório de 2023 do V-DEM, embora tenha havido uma tendência de democratização no mundo desde o século XIX, nos últimos anos vários países estão deslizando à autocracia, o que significa que o risco de reversão de regimes democráticos está presente e ações de política são necessários para evitá-lo. Da mesma forma que se pode construir um regime democrático, é possível também que ele degenere em ditadura. Aqui na América do Sul, por exemplo, temos dois casos polares muito importantes: o Chile, que outrora foi uma das ditaduras mais sanguinárias do continente, é hoje uma vibrante democracia liberal e o nosso vizinho mais próspero. Por outro lado, temos a Venezuela, que poucas décadas atrás era uma democracia com elevada renda per capita e hoje é uma autocracia eleitoral e, consequentemente, empobrece ano após ano.
Na região da América Latina, Chile, Costa Rica e Uruguai são considerados democracias liberais e Brasil e Argentina entre outros são democracias eleitorais[3], enquanto que os piores regimes políticos são os da Venezuela, que é uma autocracia eleitoral e os de Cuba e Nicarágua, que são classificados como autocracias fechadas.
É curioso notar que nosso presidente tenha demonstrado um “apego emocional” aos três países menos democráticos (mais autocráticos) da América Latina, com a expressão “o conceito de democracia é relativo”. Seria interessante se o presidente revelasse mais clara e precisamente o que entende por democracia e para que tipo de regime político seu governo pretende avançar, incluindo os passos necessários para sua realização. Somos, afinal, uma democracia eleitoral altamente imperfeita e desejamos saber se interessa ao nosso governo evoluirmos para uma democracia liberal ou se existe o risco de regressão para uma autocracia eleitoral, como a da Venezuela.
O apreço que nosso presidente tem sobre instituições democráticas como eleições livres e justas, liberdade de expressão, de associação e de imprensa, além do respeito à igualdade perante a lei e proteção das liberdades civis de todos os cidadãos contra abusos de estado, é algo que deixo para os leitores decifrarem – enquanto não temos pronunciamentos oficiais mais claros.
Índice de democracia 2022, com base no índice V-DEM
[1] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/06/29/lula-afirma-que-o-conceito-de-democracia-e-relativo-ao-falar-sobre-o-governo-da-venezuela.ghtml
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Democratic_socialism
[3] Democracias eleitorais têm eleições multipartidárias livres e justas, liberdade de expressão e de associação e grau satisfatório de participação eleitoral. Democracias liberais atendem a estes preceitos e têm ainda, em adição, maiores restrições do judiciário e legislativo sobre o executivo, que protegem mais liberdades civis e promovem igualdade perante a lei. Ver o relatório V-DEM Democracy Report 2023, pg. 12.
2 Comentários
Seu texto me fez tomar consciência do caminho que estamos seguindo.
Assustador!
Muito esclarecedora esta exposição. Parabéns!