Era uma vez uma jovem e recém-formada em engenharia, que resolveu empreender. Junto com alguns amigos de graduação, tiveram uma ideia sensacional: fabricar carros somente usando soja. Eles escolheram um terreno em Itajaí para instalar sua fábrica e, como inventaram um novo processo industrial, cercaram a fábrica com muros elevados para evitar espionagem, pois sua inovação era muito valiosa. Em poucas semanas, garantiram um suprimento constante de soja, deixando os produtores de soja de Campos Novos, Canoinhas e Xanxerê felizes da vida com o aumento de demanda e os maiores lucros obtidos. Em Itajaí, a enorme fila de caminhões descarregava a soja no pátio da empresa e o prefeito e toda a população local celebraram o aumento de atividade econômica na região, o que traria prosperidade para a cidade. Entretanto, todo mundo estava curioso como este grupo de amigos conseguiria produzir carros somente com soja. Nos manuais de engenharia e na internet, ninguém descobriu nenhuma referência a esta tecnologia. O ChatGPT chegou a dizer que era impossível. A curiosidade de todos foi aguçada com uma bela surpresa: três meses depois do primeiro carregamento de soja, caminhões cegonha cheios de automóveis começaram a sair do pátio da empresa, e a nossa empreendedora, líder do grupo, deu uma entrevista a um jornal local prometendo a produção de carros elétricos nos próximos meses.
Curiosidade mata.
Como eles estão produzindo carros somente com soja? Como assim, não precisam de motores, vidros, pneus, lataria e estofamento? Como isto é possível? O fato é que os produtores de soja do estado estavam contentes com a maior demanda, a região de Itajaí prosperava com a fábrica produzindo automóveis na cidade e consumidores de todo o país estavam se beneficiando da oferta de carros melhores e mais baratos do que os produzidos pela indústria automotiva nacional. Então começaram os problemas. Um jornalista investigativo conseguiu um grande furo de reportagem, que lhe traria prêmios de jornalismo e o alavancaria para o estrelato entre seus pares. No meio da noite, ele conseguiu adentrar os muros da fábrica para descobrir como se produz carros apenas com soja. Para sua surpresa, não havia nenhuma fábrica lá, apenas um gigantesco cais, onde navios atracavam desembarcando automóveis e embarcando soja. O escândalo veio a público no dia seguinte e o jornalista se tornou nacionalmente famoso: o grupo não tinha uma fábrica de automóveis e somente praticava comércio exterior!
Para o grupo de amigos, isto foi o início de seus problemas: a associação de produtores domésticos de automóveis abriu processo contra eles por competição desleal, sindicatos dos trabalhadores desta indústria começaram a fazer piquete na frente das instalações da empresa, acusando-os de gerar desemprego e políticos em Brasília ficaram indignados, pois a iniciativa dos jovens empreendedores estava minando a política do governo de conteúdo nacional que, junto com subsídios e incentivos fiscais, visava estimular a indústria doméstica. Em pouco tempo se formou um consenso na opinião pública contra o empreendimento e começaram a chover processos jurídicos contra os empreendedores que receberam multas astronômicas, inviabilizando o negócio. Depois de menos de um ano fornecendo carros melhores e mais baratos aos consumidores do país, acharam por bem encerrar atividades. Este pequeno conto ilustra bem algumas lições sobre o funcionamento econômico das sociedades, tanto no âmbito puramente econômico quanto no âmbito político. No âmbito econômico existem basicamente duas tecnologias para produzir bens – no caso aqui, automóveis. Uma tecnologia envolve ter domesticamente montadoras e uma cadeia local de autopeças, a outra tecnologia é usar o resto do mundo como uma grande fábrica de automóveis. Esta tecnologia se chama comércio exterior.
Na segunda tecnologia, a única coisa que se precisa é fornecer os insumos que são necessários para obter os automóveis – no nosso exemplo, soja. É como se plantássemos soja e a colhêssemos automóveis, melhores e mais baratos do que os produzidos com a outra tecnologia. Ocorre que um dos grandes segredos do sucesso econômico dos países é produzir domesticamente aquilo que temos vantagens comparativas e importar aquilo que nos é mais caro produzir. Na nossa vida profissional usamos o mesmo princípio: nós nos especializamos naquilo que fazemos melhor e compramos dos outros tudo aquilo que nos é mais caro e difícil de produzir por conta própria. Países não são diferentes e os grandes ganhos do comércio exterior residem nas importações (produtos melhores e mais baratos), sendo que as exportações representam apenas os custos que se deve incorrer para pagar pelas importações. No conto acima, sob o ponto de vista da tecnologia usada, a soja é um insumo de produção e representa o custo incorrido (análogo à exportação) para que se possa obter o benefício de consumir carros bons e baratos (a importação).
A lição política do conto aparece no ativismo de grupos de interesse que, embora pequenos e menores (produtores domésticos do produto importável) do que os grandes beneficiários do comércio exterior (produtores dos bens exportáveis e consumidores dos importados), têm melhor capacidade de organização para capturar uma fatia maior de renda em detrimento do resto da sociedade, ao conseguir proteção do governo.
A ideia recente do atual governo de estimular a “reindustrialização” do país com aumento de conteúdo local na cadeia produtiva de automóveis é uma proposta que mantém nossa indústria ineficiente, onerando o cidadão comum que deve pagar mais caro pelos automóveis produzidos no país de duas formas: a primeira, ao ter que pagar o custo dos incentivos fiscais e subsídios, que são custos incorridos por toda a sociedade, não apenas pelos consumidores de carros. Estes custos aumentam a dificuldade do governo de controlar o déficit público e o crescimento da dívida, piorando os prospectos de estabilização macroeconômica; a segunda forma é pela renúncia em utilizar a nossa segunda tecnologia (o resto do mundo) que produz carros melhores e mais baratos. Este tipo de política pública interessa a certos grupos de interesse que compram privilégios do governo, como subsídios, incentivos fiscais e proteção contra competição externa, em detrimento do resto da população. Este tipo de polícia pública não interessa ao resto da sociedade, pois não é possível conceder privilégios e proteção a um determinado grupo de interesse sem onerar e desproteger o resto da sociedade. Se a ideia de promover a expansão de uma indústria com nacionalização de componentes, por que não fazê-lo integralmente, usando a soja produzida em Xanxerê como o insumo totalmente nacional e usar a tecnologia chamada resto do mundo para obter carros melhores e mais baratos? O país certamente agradeceria.