Em almoço de comemoração ao Dia da Mulher num bar em reduto do partido, o presidente Lula (PT) disse que está “cansado” de ouvir falar em inteligência artificial (IA). Segundo ele, não há necessidade de investimento nesse tipo de tecnologia em um país com “tanta gente inteligente”. Esta declaração, que não passou despercebida, ocorreu um dia após o presidente pedir ao ministério da Ciência e Tecnologia a elaboração de um plano para uso da inteligência artificial no país até junho.
Discursos contraditórios fazem parte da política, pois muitas vezes deseja-se agradar plateias distintas e, em decorrência, o discurso precisa ser adaptado ao gosto de cada uma. Problemas surgem quando cada plateia fica sabendo do que foi dito para as outras, e aí o discurso perde credibilidade.
Opositores da plataforma política do presidente podem argumentar que o presidente não sabe o que está dizendo, que tem uma estratégia de enganar sistematicamente seus eleitores, que em alguns discursos de improviso fala exatamente o que pensa, etc. Seus apoiadores podem argumentar que certas contradições são apenas alguns escorregões retóricos ou ainda que são apenas comentários jocosos para conquistar a simpatia da plateia.
Independentemente de qual avaliação correta, a dos opositores ou a dos apoiadores, declarações contraditórias de um chefe de estado, quando descobertas, quase nunca soam bem, pois se traduzem em incerteza a respeito da linha de conduta a ser seguida.
O fato é que IA faz parte de grande grupo de inovações tecnológicas que tem o potencial de transformar radicalmente nossas vidas. O potencial para aumentar nossa produtividade, rendimentos e qualidade de vida é simplesmente imenso e pode se concretizar muito rapidamente, o que significa que os custos de ajustamento podem ser grandes também. Ao mesmo tempo em que novas tecnologias complementam nosso trabalho, como um software que automatiza certas rotinas de trabalho (Excel) e expande nossa produtividade, elas também podem simplesmente substituir o trabalho humano como, por exemplo, a mecanização em linhas de produção. Um trabalhador que se defronta com uma nova tecnologia precisa de algum tempo para se adaptar e incorporar a inovação em seu trabalho ou descobrir novas tarefas onde sua produtividade será maior com o auxílio das novas tecnologias.
Embora muita atenção seja dada à IA do tipo LLM (large language model), popularizada e rapidamente disseminada por softwares do tipo ChatGPT, Copilot e Gemini, outras formas de IA são as presentes em processos de automação, robótica e ciência de dados. A rápida multiplicação de drones, seja para combater pragas agrícolas, aplicativos militares ou ainda para lazer e diversão é outra evidência de como estas inovações estão mudando rapidamente nosso mundo. A tecnologia de IA tem se mostrado ainda uma tecnologia de uso geral, isto é, pode ser aplicada em vários contextos distintos e este efeito é magnificado por causa de inovações em outras áreas do conhecimento, como química e engenharia de materiais, biologia e medicina, nanotecnologia, etc. A relação entre ciência e tecnologia está cada vez mais profunda e caminhando em ritmo mais acelerado. Enquanto a ciência possibilita a criação e descoberta de novos materiais, como lentes, por exemplo, a engenharia de construção de novos e mais potentes microscópios possibilita maiores avanços científicos. Ciência e tecnologia geram este tipo de sinergia, agora em versão mais rápida. O potencial destas inovações para reduzir rapidamente pobreza, fome e doenças é muito grande.
Por outro lado, nem tudo são flores no que diz respeito à IA (e outras inovações, é claro). Assim como várias aplicações são boas, outras têm grande potencial destrutivo. Considere as aplicações militares, como o uso intensivo de drones na guerra da Ucrânia e de robotdogs (cães robôs) na guerra de Israel contra o Hamas. Estas tecnologias conferem uma grande vantagem para quem as detém, pois reduz a exposição de soldados e cães aos horrores da guerra, além de infligir maior poder de destruição aos inimigos. Considere também o uso de IA em campanhas políticas, com o uso de deepfake, por exemplo, onde é possível criar e disseminar rapidamente informação falsa de forma crível. Considere, finalmente, o uso de dados pessoais disponíveis na internet, que podem ser usados de forma a violar direitos à privacidade e sigilo dos cidadãos e possibilitar abusos de governos com tendência autoritária.
Desta forma, é natural a preocupação de regular as aplicações de IA para que seu lado positivo seja proeminente. O problema é que regulação está sujeita à questão da inteligência humana limitada: como regular, considerando que o fluxo de inovação é muito rápido, em contraste com a lentidão de processos legais e administrativos, tão típicos de órgãos regulatórios? Como regular algo que está em rápida transformação, se os instrumentos regulatórios não acompanham as mudanças e podem ser tanto ineficazes quanto contraproducentes? Como regular algo que não conhecemos bem e nem sequer conseguimos entender adequadamente suas consequências?
Se o problema de como e o que regular é complicado, considere ainda o fato de que, para potencializar os efeitos positivos de inovações sobre produtividade e mercados de trabalho, são necessárias instituições de suporte, como um sistema educacional de boa qualidade que enfatize as habilidades necessárias para que pessoas não fiquem para trás na corrida tecnológica, como domínio de línguas, matemática e capacidade de resolução de problemas, tendo como ciência e pensamento crítico como molas propulsoras? Sem capital humano adequado e em grande escala, é pouco provável que a introdução de IA na sociedade brasileira seja plenamente produtiva. Não custa lembrar que no quesito de educação o Brasil vai mal há muito tempo, estando sempre nas últimas posições de indicadores internacionais como o PISA.
Outra instituição de suporte necessária é um bom ambiente de negócios, pois mercados organizados e competitivos funcionam como uma espécie de IA para nós. Mercados, ao conectar nossas habilidades e inteligências limitadas, nos permitem produzir muito mais do que poderíamos isoladamente – individualmente não conseguimos produzir sequer um lápis, que não é exatamente uma maravilha tecnológica. Usando mercados, que coordenam nossas habilidades e revelam nossos desejos, conseguimos produzir e consumir produtos e serviços extremamente sofisticados. No quesito de governança de mercados o Brasil vai mal também, tanto no famoso Doing Business do Banco Mundial, quanto em índices de liberdade econômica, como o da Heritage Foundation.
Inovações tecnológicas como IA podem mudar o país para melhor, mas somente se formos capazes de resolver a contento os nossos próprios impedimentos à prosperidade com inclusão social. Não comprovamos ainda ter a inteligência humana necessária para fazer o básico, o que suscita certo pessimismo na capacidade de criar uma estrutura de governança apropriada para IA e, pelo contrário, acabarmos criando uma “Empresa Brasileira de Inteligência Artificial”, como instrumento de apoio à nossa maneira pouco inteligente de fazer política industrial. O que resta é a esperança que a IA nos ajude a sobrepujar a nossa falta de inteligência humana e que assim possamos minimizar seu potencial destrutivo.