Um amigo mato-grossense contou-me o caso, autorizou-me a transformá-lo em crônica, mas sem citar o seu nome. Não deseja melindrar ninguém de sua cidade nem parentes dos personagens porventura vivos.
Filmes e novelas costumam alertar que “qualquer semelhança da história ou dos personagens com pessoas, fatos e locais será mera coincidência”. Esta crônica narra personagens, locais e fatos reais.
O fato ocorreu em meados do século passado; por volta de 1960.
O local foi uma pequena cidade do interior do Mato Grosso, bem distante da então capital Cuiabá. Aliás, Cuiabá continua sendo a capital do Mato Grosso, e Campo Grande é a capital do Mato Grosso do Sul. Não confundam para não melindrarem os mato-grossenses.
Como cidade pequena, tinha ruas de terra, com prefeitura, igreja, praça central, pequena maternidade e estradas de terra ligando-a às cidades vizinhas com linha de ônibus irregular. Irregular, sim, porque o trânsito de ônibus dependia das chuvas e do barro na estrada.
A escola municipal tinha apenas o antigo curso primário.
Não havia polícia militar; apenas um delegado e um juiz de paz nomeado pelo prefeito.
A luz elétrica provinha de gerador a lenha instalado nas barrancas do rio que passava pela cidade. Não havia luz elétrica durante todo o dia; havia energia de 2 da tarde até meia-noite. O tempo com energia era reduzido em caso de falta de lenha ou de problemas com o gerador.
A cidade não tinha estação de rádio. Tinha serviço de alto-falante do Bar do Camponês, que funcionava à noite quando havia energia. O som e as músicas alcançavam a praça central e seus arredores.
O personagem principal desta crônica é Seu Gulu, fazendeiro da região, dono da maior fazenda situada na área rural da cidade, se bem que a toda a cidade poderia ser considerada área rural. Muito rico, seu Gulu era dono de vastas áreas de terra e muitas cabeças de gado.
Ele tinha uma característica notável: era excepcionalmente sovina. O conhecido pão-duro, o miserável, o munheca de samambaia, muito apegado ao dinheiro.
Ele andava pelado em casa, mesmo no inverno, para não gastar roupa. Somente usava roupa quando ia à cidade fazer compras, que se resumiam ao mínimo necessário.
Seu Gulu não se casou, pois não admitia gastar dinheiro com mulher e filhos. As más línguas diziam que ele detestava a ideia de ter sogra e de receber sua visita em casa, o que significava gastos extras.
Seu Gulu tinha um irmão, Zeca Pitomba, uns 10 ou 12 anos mais novo que ele e que era o oposto do irmão. Cachaceiro, bom vivant e desapegado, gastava o dinheiro com bebidas, bares, jogos e passeios sem se preocupar com o amanhã.
O dinheiro que Seu Gulu não queria gastar com uma mulher Zeca Pitomba gastava com todas. Vivia o presente e pronto.
O bom vivant Zeca Pitomba vivia dizendo pela cidade:
– Gulu é uma besta. Vive economizando. Não gasta, não vive, não bebe, anda pelado pra não gastar nada. Como não tem mulher nem filhos, quando morrer ele vai deixar tudo pra mim. Vai economizar pra eu gastar.
E completava:
– Ele vai morrer logo, porque é bem mais velho que eu, e eu vou ter muito tempo pra aproveitar o dinheiro dele.
Quando falava isso, Zeca Pitomba bebia mais umas 3 pingas e 5 cervejas por conta do dinheiro que receberia da herança do irmão, deliciando-se com a perspectiva de ter mais dinheiro pra gastar.
Zeca Pitomba ria. E gostava da ideia. E antevia o que iria fazer com o dinheiro da venda do gado do irmão. Contava com o ovo nos fundilhos da galinha.
Mas o destino é cruel e o mundo dá suas voltas. O mundo gira e prega suas peças, como se dizia antigamente. Hoje, diz-se que faz suas pegadinhas.
Zeca Pitomba morreu antes do irmão pão-duro.
Cláudio Duarte, colunista e colaborador do PortaliMulher.
3 Comentários
Excelente. Conheço história semelhante cujo protagonista, também solteirão, era mineiro, mas que morreu lá no Mato Grosso. Até cerveja vencida foi encontrada em seu espólio…
Todos conhecemos histórias parecidas. Aqui no meu bairro no Rio contam a história de um português dono de um restaurante popular que escravizada a família 18 horas por dia. Juntou muito dinheiro e não dava uma vida digna à mulher e filhos . Em seu leito de morte deu o número da conta para um irmão que confiava e pediu para que cuidasse de seus filhos e esposa que não tinham estudado e eram ignorantes. O irmão partiu para Portugal com todo o dinheiro do falecido deixando a família com sua luta no restaurante.
Crônica excelente sobre as misérias humanas…
A fluidez e a narrativa impecável são dignas de seu grande autor!