O apagão, ocorrido em Portugal e na Espanha no dia 30 de abril, teve méritos. O escritor angolano José Eduardo Agualusa listou-os.
O PORTAL IMULHER tomou conhecimento do texto, a respeito do “apagão” acontecido em Portugal e na Espanha no dia 30 de abril, de autoria de José Eduardo Agualusa, jornalista e escritor angolano, publicado originalmente no jornal O Globo do dia 3 de maio deste ano e republicado no portal Aldeia Nagô, o qual merece ser trazido para suas leitoras, pois dá o que pensar.
O autor constatou que, sem energia elétrica e sem celular, as pessoas se conectaram de forma mais humana, como antigamente, trocando histórias e apoio mútuo.
Eis o texto.
“O apagão em Portugal e Espanha teve um mérito inesperado: acendeu as pessoas. A longa interrupção de energia elétrica, que na segunda-feira passada, atingiu a Península Ibérica, trouxe caos e inquietação para as grandes cidades.
Crianças presas em elevadores, escolas fechadas, dezenas de voos cancelados, boatos terríveis e muita gente assustada fazendo filas diante das mercearias dos bairros para comprar água, vinho tinto, comida enlatada e papel higiênico.
Ao entardecer, porém, o ambiente distendeu-se. Em Lisboa, de onde escrevo essa coluna, vizinhos, que nunca antes se haviam cumprimentado, conversando uns com os outros, sentados na calçada. Vi desconhecidos partilhando velas e lanternas. Outros oferecendo água e alimentos aos menos prevenidos.

Embora os semáforos tivessem deixado de funcionar, não testemunhei nenhum sinal de nervosismo. Os motoristas se respeitavam uns aos outros, respeitavam os pedestres e até mesmo os ciclistas numa cortesia rara para os padrões locais. Cheguei a me sentir em Berlim.
As esplanadas encheram-se de gargalhadas, ainda que os bares e restaurantes não tivessem como servir refeições quentes. As pessoas deixaram de olhar para a tela dos celulares e começaram a prestar atenção umas nas outras. Parecia domingo numa cidade pequena há 30 ou 40 anos antes da invenção dos celulares.
Katie Flour, uma cheff norte-americana, radicada na capital portuguesa, passou a manhã dessa segunda-feira assando um cordeiro e preparando saladas para o jantar pop up num restaurante muito conhecido.
Às 11 horas, ocorreu o apagão. Ao final da tarde, percebendo que o jantar não iria se realizar, Katie colocou travessas com comida nos bancos de um jardim em frente, acendeu algumas velas e convidou os vizinhos. Outras pessoas foram aparecendo e, o que poderia ter sido um fracasso, se transformou em momento mágico, que Katie nunca mais esquecerá.

Além disso, por algumas horas libertas da poluição luminosa, as estrelas voltaram. Na noite esplêndida, morna e acolhedora como um abraço, vi jovens deitados de costas nos parques e nos jardins apontando com espanto para o desenho das constelações. Talvez fosse a primeira vez que alguns deles viram estrelas.
Vozes mais românticas defendem que os governos deveriam organizar apagões pelo menos uma vez por mês. Não me atrevo a tanto. Contudo, talvez não fosse má ideia cortar o acesso à internet todas as semanas, por exemplo, nas noites de domingo.
Nesses domingos, jurássicos voltaríamos a ser simplesmente humanos como os nossos avós. Conversaríamos, olhos nos olhos, inteiros e sem interrupções, trocando histórias e gargalhadas, festejando a amizade e o milagre da vida.
Em vez de tirarmos fotos do jantar pra depois postarmos no Instagram, comeríamos. Em vez de nos abraçarmos para as selfies, nos abraçaríamos. Em vez de nos preocuparmos com os grandes dramas do mundo, estaríamos atentos aos pequenos problemas daqueles que nos são próximos.
Isso tudo, atenção: sob a luz perpétua das estrelas”.