“Para viver, temos de nos narrar; somos um produto da nossa imaginação. Nossa memória é, na verdade, um invento, uma história que reescrevemos a cada dia […] o que significa que nossa identidade também é fictícia, já que se baseia na memória.” (MONTERO, A ridícula ideia de nunca mais te ver, p. 104).
Li essa passagem enquanto trabalhava no projeto do meu futuro blog, e foi então que percebi o motivo pelo qual não conseguia sair do rascunho do texto mais importante: aquele em que eu tentaria dizer quem sou, falar de mim sem tantas ressalvas. Mas simplesmente travei.
Porque me narrar, como propõe Rosa Montero, é mais do que juntar palavras em um parágrafo que soe bem. É um tipo de exposição íntima, um processo de reconstrução: criar uma versão pessoal que seja a mais verdadeira possível e que caiba no texto. Mais que isso, precisa ser suficiente para me apresentar com fidelidade e sem tantas distorções diante do leitor.
É curioso como se torna difícil descrever a pessoa com quem convivemos vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, mas é fácil escrever sobre alguém que vimos poucas vezes, como os autores que “conhecemos” apenas por suas obras. Após ler o segundo livro de Rosa Montero, falaria sobre ela cheia de propriedade.
Parece estranho o sentimento de vazio e de pânico (por mais sutil que seja) diante da tarefa de escolher as palavras certas. Como se qualquer deslize pudesse revelar demais — ou de menos. Como se houvesse sempre o risco de errar o tom, de exagerar, de soar pretensiosa ou, ainda pior, irrelevante.
Me pergunto por que isso acontece. Por que nos tornamos tão vulneráveis justamente quando precisamos dizer quem somos? Talvez porque estejamos sempre à espera de aprovação, ou talvez porque nos acostumamos a aceitar o que o olhar do outro reconhece. Será que só conseguimos nos ver como imaginamos que os outros nos enxergam?
Ou será porque no fundo ainda acreditamos que poderíamos — ou deveríamos — ser melhores, e que um texto como este precisa provar que estamos dentro da margem de aceitabilidade?
A página em branco diante de mim carregava todas essas perguntas. E o que deveria ser apenas um artigo de apresentação virou, quase sem aviso, uma pequena crise existencial. Porque a página em branco tem esse poder: ela não exige apenas palavras. Exige posição.
Se eu escolhesse me mostrar de um jeito mais leve, talvez soasse como superficialidade; se fosse mais íntima, poderia parecer invasiva; se forçasse no humor, destoaria da seriedade das minhas dúvidas.
Diante de tantas incertezas, percebi que o bloqueio não era com a escrita. Era com o espelho.
A verdade é que nem tudo o que vivemos merece ser contado. Nem tudo é interessante, nem tudo é bonito, nem tudo faz sentido fora da pele de quem viveu. E mesmo assim (ainda assim) há valor em contar.
Porque, no fundo, não é sobre uma vida romanceada. É sobre o atravessamento, a dúvida, a falha, os recomeços, a volta por cima. É sobre aquele instante em que a gente não sabe o que dizer e mesmo assim tenta dizer. É sobre ser quem se é de verdade.
Narrar-se é um ato de coragem e, paradoxalmente, também um ato de ficção. Volto à Rosa Montero, com toda sua lucidez: somos um produto da nossa imaginação.
Nossa memória é uma história reescrita todos os dias, ela é moldável; nossa identidade é fluida, o tempo todo. Ou seja, cada vez que conto algo a meu respeito, estou criando uma versão: não falsa, mas profundamente interpretada.
Uma versão que escolho, inclusive inconscientemente, mostrar. E que às vezes escondo de mim mesma, antes de esconder dos outros. Aquilo que escolhemos contar diz mais sobre quem somos agora do que sobre o que de fato aconteceu.
Então percebi que já estava me descrevendo — justamente ao admitir que não sabia por onde começar. Ao tentar nomear o silêncio, encontrei voz.
Talvez seja esse o espírito de Coisas de Si: uma escrita que nasce do tropeço, que não se furta da dúvida e que aceita a vulnerabilidade como ponto de partida. Um espaço para falar de dentro, sem máscaras, com permissão para desagradar. Onde posso rir de minha memória seletiva e ainda assim confiar no que sinto, posso me contradizer sem perder o fio do que importa.
Se viver é se narrar, então eu sigo viva, mesmo quando a história não sai como gostaria. E se toda identidade é um pouco ficção, que ao menos seja uma boa narrativa.
Será um blog pessoal, quase um diário. Cheio de imperfeições, de versões inacabadas e de muitas coisas de Si: essa que vos escreve, em constante processo.

3 Comentários
Que coluna espetacular. Falar de si mesmo pode ser fácil, quando queremos projetar uma ideia no ouvinte; narrar a si mesmo, a sua história, é outra coisa. Seria lembrar porque tomei tal decisão, o que estava sentindo e porque? E mais difícil ainda, narrar para outros lerem. E cada um vai ler, adivinha, com o que conhece de si mesmo. As pessoas que te conhecem, também assim o fazem com suas próprias percepções. Boa sorte, Simone. Já estou louca para ler!
Li sua coluna agora. Sempre te leio com admiração e de mente aberta para perceber – e receber – as energias de sua sensibilidade.
Aconteceu hoje, com dose especial de carinho e compreensão.
Carinho por compreender sua dúvida diante do que escrever; da dificuldade de falar de SI; da dificuldade de expor-se, em razão de sua discrição e modéstia.
Compreensão por ver em seu texto a sua grande exigência consigo mesma e a busca da melhor e mais definidora palavra para expressar seus sentimentos com precisão. Definir e definir-se em momento de dúvida torna a própria descrição bem mais difícil.
A sua dúvida diante da página em branco reflete sua honestidade consigo mesma e para com suas leitoras, na busca de definir-se como é, sem exageros e sem omissões. Talvez até com receio de ser cabotina e exagerar nos elogios próprios, que você bem os merece. Por isso, comento o seu texto: para que eu faça a você os elogios que você bem merece e que você, por modéstia, teme fazer-se.
Você pode até ser econômica nas referências a SI própria, mas quem conhece você e convive com você jamais economizará palavras para destacar a alma sensível, bondosa, honesta e correta que você é.
Oi, Si.
Uma das grandes dificuldades de se descrever é pelo fato de que nós não temos a menor noção de quem somos. Tanto é que, quando um recrutador pede para falarmos sobre nós, normalmente dizemos ‘eu sou da cidade X, tenho um pet, gosto de Y’ (tudo relacionado ao plano material), nunca nos arriscamos a descrever nosso íntimo. Ou, pelo menos, não entendemos que é isso que o outro está querendo saber.
Descrever a si mesmo, para si mesmo, é mesmo um desafio. Acabei de fazer 30 segundos de pausa e comecei a pensar na minha resposta. Não fiquei tão amedrontada ou paralisa quanto pensei. Que bom!!
É mesmo muito curiosa a fala da Rosa Montero sobre nossas memórias de coisas passadas serem muito mais sobre o que reinventamos, readaptamos, reescrevemos. Como se o que vivemos se multiplicasse quando relembrado com as mais diversas tonalidades de azul ou as mais diversas intensidades de um tempero.
Não vejo a hora de ter acesso ao seu blog. Desejo que não demore. Você sabe que admiro demais os seus textos e o quanto você coloca de si nas suas palavras. Se você pensar, seus textos já são uma forma de se/te descrever. Talvez a forma mais genuína, já que você está se autodescrevendo sem perceber.
Beijo.