Conheci Deirdre McCloskey num seminário de pesquisa no departamento de economia da Universidade de Illinois, quando eu ainda era aluno de PhD nessa universidade. Seus seminários se tornavam obrigatórios para alunos de pós em busca de novas ideias e de debates acalorados entre os professores e pesquisadores da área. Naqueles anos, a conheci como Donald McCloskey, renomado economista, ex-assistente de pesquisa de Milton Friedman (famoso prêmio Nobel de economia), com ideias extremamente originais e com altíssima produção e influência intelectual na academia. Hoje, décadas depois da sua transição, ela continua muito influente, promovendo a expansão da nossa compreensão econômica a respeito do mundo com suas ideias e hipóteses originais.
Seus últimos trabalhos acadêmicos versam sobre história econômica e ela busca entender o mistério do crescimento econômico: Por que e como o mundo se tornou rico nos últimos duzentos anos? Economistas têm se debruçado sobre o tema e discutido várias hipóteses sobre as causas da prosperidade, e a mais recente e instigante contribuição ao debate vem de Deirdre. Vamos aos fatos: ao longo de toda a história da humanidade até por volta de 1820, fome, miséria, doenças e violência eram as causas de mortalidade precoce e pervasiva, presente em todas as sociedades ou agrupamentos humanos no passado. O gráfico abaixo ilustra este fato e mostra que a partir de aproximadamente 1820 a situação começou a mudar e a humanidade escapou, em grande parte, da miséria e da morte precoce. O que o gráfico mostra é o comportamento do PIB (produto interno bruto) mundial estimado desde a época de Cristo até os dias de hoje. Note a explosão do PIB nos últimos duzentos anos, que veio acompanhado de crescimento populacional[1].
Explicar as causas deste fenômeno não é apenas um exercício acadêmico, mas de profundas consequências práticas: se entendermos suas causas, poderemos continuar nesta trajetória e adotar melhores políticas para que o mundo pré-moderno (o de antes de 1820) não volte a nos assolar.
No sentido econômico, o mundo pré-moderno perdurou por milênios, onde prevaleceu o chamado ciclo Malthusiano: com uma população muito pobre, todo acréscimo populacional põe a população em risco de fome e inanição, de forma que não há crescimento populacional. Quando a renda cresce algo, seja em função de maior esforço de trabalho ou de maior produtividade, as pessoas vivem um pouco melhor, o que significa que a taxa de natalidade tende a aumentar. Mas isso reduz a renda per capita e volta-se ao mundo anterior de maior miséria e fome. A partir de 1820 o mundo rompeu com este ciclo de miséria e baixo crescimento populacional.
Então vamos lá. Resumindo um riquíssimo debate acadêmico/científico entre economistas e historiadores, três hipóteses foram levantadas para explicar o crescimento econômico de 1820 até hoje: a hipótese geográfica, a cultural e a institucional. A hipótese geográfica diz que países próximos da linha do Equador seriam pobres, por contar ambientes adversos à atividade humana. São países muito quentes e úmidos, onde o esforço de trabalho seria extenuante e a população sujeita a várias doenças debilitantes, como malária, febre amarela, dengue, etc. Fora do entorno do Equador, as possibilidades de vida produtiva e de enriquecimento são maiores. A hipótese cultural diz que certos povos têm valores, normas sociais e credos religiosos que permitem maior dedicação ao trabalho e acumulação de poupança, essenciais para o crescimento econômico. Finalmente, a hipótese institucional, levantada inicialmente pelo prêmio Nobel de Economia Douglass North, diz que as “regras do jogo” da vida em sociedade moldam os incentivos que as pessoas têm para trabalhar, acumular riqueza e inovar. Economistas tendem a aceitar a hipótese institucional em detrimento das hipóteses geográfica e cultural citando dois experimentos naturais: as divisões da Alemanha e da Coréia. Ambos os países, depois da segunda guerra mundial, foram divididos em duas partes, uma socialista, controlada pela União Soviética, e a outra capitalista, sob a influência dos Estados Unidos. A discrepância de trajetórias de enriquecimento e melhorias em bem estar das populações dos dois países é bem visível e conhecida: a Alemanha Ocidental e a Coréia do Sul enriqueceram rapidamente, enquanto que a Alemanha Oriental e a Coréia do Norte não conseguiram prosperar. Nos dois casos, não havia diferenças geográficas nem étnicas, religiosas ou culturais. Então, a hipótese institucional diz que países organizados em torno de mercados competitivos e democracia, com estabilidade macroeconômica e a regra da lei para coibir abusos de governo, conseguem prosperar.
Em seu mais recente grande projeto de investigação acadêmica, Deirdre McCloskey levantou outra hipótese. Baseada em ampla evidência empírica, consolidada na sua trilogia da “Dignidade da Burguesia”, uma obra densa de mais de 1.700 páginas, ela mostra que as causas últimas do “grande enriquecimento” não são as instituições (como direitos à propriedade e a regra da lei), nem acumulação de capital e nem ciência e tecnologia. Elas são necessárias para haver prosperidade, mas não são condições suficientes. Em última instância, para Deirdre McCloskey, são as ideias com sua livre circulação, protegidas contra a censura imposta pelo estado ou pela religião, que são as grandes motivações para inovação e aumento de produtividade, necessárias para romper com o ciclo Malhusiano. Esta liberdade de gerar novas ideias e pô-las em prática, associado ao respeito social criado em direção a empreendedores e inovadores é o que ela descreve na “Dignidade da Burguesia”. A burguesia da qual ele fala é toda a sorte de profissionais que vemos atuar na sociedade, como cientistas, médicos, engenheiros, advogados, consultores e comerciantes. Ocorre então que as instituições de liberdade econômica e democracia liberal associadas ao respeito e dignidade concedidos à burguesia, são tão fortemente relacionadas que sintetizam ideia de liberdade individual.
Se ela estiver correta e a causa fundamental do grande enriquecimento for a dignidade da burguesia (ou alternativamente, a nossa liberdade individual), saberemos então o que é necessário conquistar e preservar para que nossos filhos e netos tenham vidas mais prósperas, longas e felizes do que nós e nossos antepassados tivemos. Para a nossa sorte, não precisaremos nos debruçar sobre sua trilogia de 1.700 páginas para entende-la. Junto com o economista Art Carden, ela publicou um livro em 2020 que condensa suas ideias em apenas 230 páginas, o “Leave me Alone and I’ll Make you Rich”, obra essencial para entender porque e como chegamos aqui.
Para quem quiser conhecer um pouco mais o trabalho da Deirdre McCloskey, recomendo este vídeo. Quem quiser conhecer o importante e inovador trabalho e ideias de outras mulheres essenciais para a promoção da liberdade individual e prosperidade geral, esta obra é fundamental.
[1] Este vídeo aqui condensa a história do crescimento do PIB per capita e a evolução da expectativa de vida para 200 países desde 1810, em apenas quatro minutos! (https://www.youtube.com/watch?v=fJ6y8ZJMoqM)
2 Comentários
Ou seja; a liberdade de indivíduos e suas ideias é o que faz a criatividade e o lucro como consequência. Na Idade Média vivíamos numa sociedade escravocrata, o de os bens eram retidos pelos senhores feudais e Impérios e o indivíduo não tinha liberdade para se expandir. Perfeito.
Sem liberdade de expressão não existe criatividade e nem progresso.